O texto a seguir é o transcrito de um episódio gravado no Natal de 2015 para o podcast Science and Belief, uma iniciativa do Instituto Faraday para Ciência e Religião. A entrevistada do dia foi a Dra. Hilary Marlow, biblista e colaboradora do Instituto Faraday.

 

  • Olá Hilary! Você pode nos contar um pouco sobre você e o que significa ser uma acadêmica da Bíblia?

Eu comecei a estudar para ser uma biblista depois que meu filho mais novo começou o ensino médio, porque eu queria aprender os idiomas bíblicos hebraico e grego. Uma coisa levou a outra e acabei vindo para Cambridge fazer um doutorado em Estudos Bíblicos. Os Estudos Bíblicos são uma forma de examinar o texto da Bíblia usando habilidades críticas como linguagem, comparando com outras culturas do antigo Oriente Próximo, observando o gênero, a forma, o estilo do texto e explorando-o com maior profundidade. É uma disciplina bastante analítica, mas também alimenta bastante uma compreensão cristã dos textos bíblicos.

  • E estou certo em dizer que seu doutorado examinou a ética ambiental à luz dos profetas do Antigo Testamento? Você pode nos contar um pouco mais sobre isso?

Sim. Quando comecei o meu doutorado, eu sabia que tinha duas áreas principais de interesse. A primeira foi que durante muito tempo me preocupei bastante com as questões ambientais. Eu fazia parte da organização ambiental cristã A Rocha, então sabia que essa era verdadeiramente uma grande parte da minha vida. Então, fiquei muito interessado no Antigo Testamento, especialmente nos profetas do Antigo Testamento, quando estava cursando minha graduação, e queria uma maneira de juntar os dois. Uma das grandes questões era: “O que a Bíblia tem a dizer à luz de nossa situação ambiental contemporânea?”, e particularmente ninguém havia realmente escrito sobre se os profetas do Antigo Testamento tinham algo específico a dizer. Então, tentei olhar para os profetas através de uma estrutura de relacionamento entre as pessoas e o mundo natural e, a partir daí, extrair alguns princípios éticos que poderiam ajudar a guiar nossa situação atual.

  • Excelente! Então eles de fato tinham algo a dizer sobre isso?

Eles falaram muito sobre esse relacionamento entre as pessoas e o mundo natural e Deus, e também como, quando o relacionamento das pessoas com Deus é quebrado ou fraturado, seu relacionamento com o mundo natural também sofre. Portanto, embora os profetas não estivessem prevendo o que temos agora, de muitas maneiras eles prenunciavam a situação que temos agora. Grande parte da sociedade se perdeu no sentido espiritual, as pessoas não reconhecem mais Deus como criador e vemos que o relacionamento das pessoas com o mundo natural está se deteriorando. O mundo natural está sofrendo por causa das atividades humanas e essa relação tripla não está funcionando como deveria.

  • E este é um ótimo momento para pensar nisso, não é mesmo? Porque este Natal está vindo após a Laudato Si do Papa Francisco e as reuniões da COP em Paris. Sei que você já falou em vários eventos sobre a Laudato Si. Você pode nos contar um pouco mais sobre o conteúdo e os recados que você tem compartilhado nesses eventos?

Acho que a encíclica do Papa é muito atual e realmente interessante. Ele adota o modelo de relacionamento que fala sobre nosso relacionamento com a criação, o mundo natural e nosso relacionamento com Deus. Ele fala sobre como esses relacionamentos falharam e como tantas vezes na busca pelo “progresso econômico” – crescimento – na verdade perdemos o contato com o mundo em que vivemos e também com o Criador. Ele não é contra a tecnologia, mas desconfia da maneira como a tecnologia e o crescimento econômico impulsionam tudo. Parte de seu apelo é que recuperemos algumas das virtudes cristãs – modos de vida que contribuem para o florescimento de toda a sociedade. Então ele aborda questões como a injustiça e o fato de que são as pessoas mais pobres do mundo que sofrem com as consequências das questões ambientais. Por exemplo, quando as alterações climáticas provocam o aumento do nível do mar e inundações, são sempre os pobres que mais sofrem com isso. Ele vê que isso é uma responsabilidade moral e que existem maneiras de viver que nós, como cristãos, devemos pensar em adotar para ajudar a mitigar os problemas e fazer alguma contribuição positiva.

Não acho que ele sugira que isso pode resolver tudo, e obviamente o acordo da COP21 mostrou que precisamos de vontade política, assim como dos cristãos, para fazer a sua parte, mas acho que a mensagem do Papa é que cada um individualmente deve fazer o que pode. Ele fala sobre virtudes como a moderação, ou em outras palavras, sobre nem sempre fazer o máximo que podemos, mas pensar em restringir o materialismo, pensar em limitar deliberadamente nossas próprias posses e nosso estilo de vida para criar um mundo melhor, e acho que isso é realmente importante. Eu certamente endossaria quase tudo o que ele disse. Acho que é uma mensagem para os católicos, mas também para os protestantes e para as pessoas que não são de fé cristã.

  • Excelente! Sendo Natal, os cristãos também estarão pensando no nascimento de Jesus, então vamos pular para o Novo Testamento. Você vê alguma ligação entre a chegada de Jesus e a vida na terra, e um chamado contínuo para cuidar da criação?

Uma das questões que surgem nas conversas entre ambientalistas é se o mundo natural tem algum valor por si só, ou se é valioso apenas porque fornece os recursos de que nós, humanos, precisamos para viver. Assim, o mundo natural é uma fonte de matéria-prima, digamos assim, para tudo o que temos e precisamos para viver. Alguns ambientalistas dirão que esse é o único valor que ele tem, e suspeito que talvez alguns cristãos também pensem assim. Mas quando eu reflito sobre o absoluto assombro e mistério de Deus se tornando humano, falando em forma humana, entrando no mundo que sua palavra falou, só consigo pensar que isso realmente dá um valor muito alto ao mundo material. Jesus entra naquele mundo como Deus feito homem. Para mim isso fala de um mistério incrível, mas também do valor deste mundo material. Acho que se nós, como cristãos, não valorizamos esse mundo da maneira que Deus valoriza, acabamos por destruí-lo. A mensagem é que Deus lhe deu esse valor porque é uma expressão de sua criatividade e amor, e Jesus Cristo entra nesse mundo, então nós também devemos amá-lo e valorizá-lo.

Uma última coisa, sempre fico intrigada com a maneira como o mundo natural, do maior ao menor, está de alguma forma envolvido na vida e no ministério de Jesus. Então, por exemplo, só para pegar o Natal, quando Cristo nasce em uma estrebaria, você tem um grande acontecimento astronômico que leva os reis, os sábios, a adorá-lo. O cosmos está envolvido. E é de fato incrível que os sábios venham porque estão seguindo uma estrela para ver o menino Jesus – aquele que é responsável por este cosmos e pela criação daquela estrela.

Nunca pensei nisso assim, então são coisas realmente maravilhosas para se pensar neste Natal. Muito obrigado por falar conosco, e tenha um ótimo Natal!

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Hilary Marlow é diretora de estudos em teologia, membro do Girton College Cambridge e professora afiliada da Faculdade de Divindade da Universidade de Cambridge. Ela foi Diretora de Cursos e Pesquisadora Sênior no Faraday Institute, trabalhando em um projeto de pesquisa financiado pela Templeton intitulado “Ciência e Escritura no Cristianismo e no Islã”.

A pesquisa acadêmica em andamento de Hilary concentra-se na descrição bíblica da interação entre as pessoas e o mundo natural e a relevância disso em contextos contemporâneos. Ela está particularmente interessada em motivações religiosas, especialmente cristãs, para a preocupação ambiental e o uso da Bíblia na ética ambiental. Seu trabalho inclui estudos textuais sobre a representação da natureza, estudo de textos da criação e sua interpretação nas tradições judaicas e cristãs posteriores, hermenêutica ecológica e estudo teológico e exegético sobre o que significa ser humano à luz dos desenvolvimentos científicos atuais.

Hilary é uma ambientalista comprometida e, por muitos anos, esteve ativamente envolvida na organização cristã A Rocha, onde atualmente é curadora. Ela fala regularmente sobre sua pesquisa ambiental para o público acadêmico e não especializado.

 

Link do artigo original: https://www.faraday.cam.ac.uk/churches/church-resources/posts/3842/

Tradução: Tiago Pereira

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