Por Uko Zylstra[1]
Tradução: Pedro Henrique A. G. Moura
Resumo. Uma tese central dos teóricos do design inteligente é que as leis físicas e químicas e o acaso são insuficientes para explicar estruturas biológicas irredutivelmente complexas, e que um designer inteligente é necessário para explicar tais fenômenos. Esta asserção, no entanto, ainda implica em uma ontologia reducionista. Nós precisamos reconhecer que a realidade exibe múltiplos modos de ser além dos modos físico e químico simplesmente, cada um dos quais são governados por leis específicas para aquele modo de ser. Este ensaio defende uma estrutura conceitual alternativa para o entendimento dos fenômenos da vida que não é nem o materialismo filosófico e nem a teoria do design inteligente.
Palavras-chave: Michael Behe; leis bióticas; William Dembski; enkapsis; design inteligente; naturalismo; reducionismo.
Nos últimos anos, proponentes do design inteligente fizeram algumas valiosas contribuições apresentando uma crítica ponderada do naturalismo filosófico e metodológico como paradigma reinante para a ciência. O naturalismo filosófico, ou mais especificamente materialismo filosófico, é a cosmovisão que reside na crença de que o mundo material é tudo o que há; não há realidade não-material que interage com e/ou influencia a realidade material. O naturalismo percebe o mundo como auto-contido, autônomo, e sujeito somente a leis intrínsecas. O naturalismo metodológico – ou “materialismo científico”, o termo que Kenneth Miller utiliza (1999, 27) – é essencialmente fazer ciência dentro de uma estrutura conceitual dos pressupostos do naturalismo filosófico. Mesmo quando não se aceita a cosmovisão do naturalismo filosófico, é comumente assumido pela maioria dos cientistas, incluindo muitos cientistas cristãos, que o naturalismo metodológico é o paradigma apropriado para se fazer ciência. Essa situação apresenta um dilema para aqueles que afirmam alguma forma de interação divina com o mundo. A aceitação do naturalismo metodológico como o paradigma para se fazer ciência pode rapidamente levar tanto para uma forma de dualismo, no qual o mundo físico é considerado autônomo e autossuficiente com Deus apenas engajado com as dimensões espirituais da vida humana, quanto para uma forma de deísmo na qual Deus é simplesmente o criador ou causa primeira do universo. Ambos, deísmo e dualismo, deixam pouco espaço para a crença em um Deus que é pessoal e está intimamente envolvido com o mundo criado.
Uma importante pergunta para os teístas cristãos, sejam cientistas ou não, é um entendimento apropriado do relacionamento do mundo criado para com Deus, o Criador. Os teístas professam que “o mundo pertence a Deus.” Mas o que isso significa para um entendimento de como o mundo é contingente[2] a Deus? De que forma o teísta deve entender a soberania de Deus? Este tópico continua a gerar extensivo debate entre aqueles interessados no relacionamento entre ciência e religião.
A teoria do design inteligente que William Dembski, Michael Behe e outros propõem é, de algumas formas, uma resposta natural dos teístas à reflexão sobre a natureza deste mundo. O design na natureza parece ser prontamente aparente para aqueles que afirmam que o universo é criado por Deus e que é criado com ordem e uma estrutura que é inteligível. Para o teísta, o design e a estrutura do mundo afirmam a crença em Deus, embora tal crença não seja dependente do reconhecimento do design no mundo. Mesmo nas escrituras, Deus frequentemente se revela como Deus Criador, como um Deus que está sempre engajado com as criaturas que Ele criou.
A escola de pensamento do design inteligente (DI) pode talvez ser traçada de volta para a teologia natural britânica do fim do século XVIII, na qual William Paley e outros argumentaram para a existência de Deus a partir da evidência de design. A teologia natural apresentou um contexto importante para Charles Darwin no desenvolvimento de sua teoria de descendência com modificação. O livro de William Paley, Teologia Natural – ou Evidências da Existência e dos Atributos da Deidade Colecionadas a partir das Aparências da Natureza (1802) era leitura obrigatória para os estudantes dos tempos de Darwin. Este contexto é muito importante para o entendimento da potência do trabalho principal de Darwin, A Origem das Espécies por Meios da Seleção Natural (1859). Este clássico é basicamente um longo argumento de que o design que nós vemos no mundo das coisas viventes é resultado da seleção natural e não da ação de um Criador/Designer. É importante notar que Darwin não necessariamente repudia o design em si; ele repudia que o agente causativo do design seja Deus. Mesmo muitos biólogos evolutivos modernos que afirmam o naturalismo filosófico reconhecem o design “aparente”. Este design é considerado aparente, porque sua cosmovisão do naturalismo filosófico não permitiria nenhuma atividade divina no universo. Todas as explicações devem ser “naturais”, o que é interpretado como sendo materialistas. Pelo fato de o evolucionismo darwiniano supostamente apresentar uma explicação natural não apenas para a origem das espécies por meio de algum processo de especiação, mas também para todas as intrincadas características estruturais, processos fisiológicos, comportamentos e adaptações dos organismos, ele se tornou o paradigma reinante para a biologia.
A inadequação do naturalismo
Um grande problema, no entanto, surge quando o naturalismo filosófico apresenta os critérios em que as formas de explicação são legitimas na ciência. Somente explicações naturalistas ou materialistas são permitidas como sendo científicas. Isso implica que qualquer referência a, ou a incorporação de atividade divina está fora dos limites da ciência. Onde isto deixa o teísta cristão que crê que a Deus está ativamente engajado com a criação e que a criação é dependente a Deus para sua existência continuada? Deus deve ser deixado na porta do laboratório para que um cristão possa se envolver com ciência? um cristão pode deixar Deus na porta do laboratório?
Uma opção, a qual é empregada pelos teóricos do DI, é refutar o princípio básico do naturalismo metodológico de que somente explicações naturalistas são válidas para a ciência. Tais explicações naturalistas estão enraizadas nas leis matemáticas e nas leis físicas e químicas. A realidade material pode e deve somente ser explicada por leis físicas e químicas. Juntamente com outra crença básica no princípio da continuidade da realidade, afirma-se que a vida surgiu de coisas não-vivas por meio de propriedades emergentes de interações físicas e químicas de coisas não-vivas. Ainda mais, a causação é limitada aos agentes causativos primários das leis (necessárias) físicas e químicas e ao acaso[3]. O argumento básico da teoria do DI em refutar o naturalismo metodológico é de que as causas naturais das leis químicas e físicas ou do acaso são inadequadas para apresentar uma explicação de muitos fenômenos e coisas de nossa experiência (Dembski 1999, cap. 5).
A teoria do DI propõe um filtro explanatório como um meio de reconhecer o design e consequentemente recorrer ao design como uma forma apropriada de explicação de certas estruturas e fenômenos. De acordo com Dembski, “sempre quando inferimos design, devemos estabelecer três coisas: contingência, complexidade e especificação” (1999, 128). Contingência, de acordo com Dembski, implica que a estrutura não é o resultado de um processo automático ou determinado; não pode ser atribuída a leis naturais. Complexidade implica que a estrutura ou sistema não poderia ser prontamente o resultado da ação do acaso. Especificação assegura que a estrutura demonstra um padrão que reflete atividade inteligente. Se uma estrutura ou processo pode ser caracterizado por todas estas três características, o design é inferido como o agente causativo para aquela estrutura ou processo. Especificação se torna um critério importante para inferir o design e Dembski se esforçou muito em estabelecer o significado e a natureza da especificação.[4]
Uma característica chave da teoria do DI é que o design é postulado como um agente causal para os fenômenos em adição a necessidade (lei natural) ou ao acaso. A detecção de tal agente causal se dá por meio da aplicação de um filtro explanatório que determina se a causação inteligente é a explicação para um fenômeno particular. O filtro funciona por meio de três perguntas: “Uma lei explica isso? O acaso explica isso? O design explica isso?” (Dembski 1998b, 94). Como Dembski aponta, “a lógica do filtro explanatório é puramente eliminativa – eliminando a lei e o acaso” (1998b, 109).
Os teóricos do DI aplicaram o filtro explanatório com maior sucesso em uma análise do mundo biológico apontando que muitos fenômenos biológicos são inexplicáveis por leis físicas e químicas (necessidade) ou pelo acaso. Alguns dos melhores exemplos são dados por Behe no seu livro A Caixa Preta de Darwin (1996), no qual ele traz um forte argumento para a complexidade irredutível de diversas estruturas e sistemas biológicos. Alguns exemplos que ele dá de sistemas irredutivelmente complexos são os cílios, o flagelo bacteriano, a bioquímica da visão e o sistema de coagulação sanguínea. A força de seu argumento é que todos os componentes da estrutura ou sistema devem estar no seu devido lugar para que o sistema funcione. Uma estrutura em que se alguns de seus componentes estejam faltando, o sistema simplesmente não funciona. Formas precursoras em que faltam alguns dos componentes ou nas quais alguns componentes apresentam estruturas variantes com uma função diferente também não seriam funcionais já que todos os componentes necessários não estariam em seu devido lugar. Como consequência, formas precursoras não seriam selecionadas para uma estrutura em particular em questão porque não haveria nenhuma vantagem seletiva para estas formas. Vantagem seletiva para outras funções que a forma precursora pode ter não provê vantagem para uma função nova ou diferente. Dessa forma, Behe afirma que a evolução Darwiniana, com seu foco na seleção natural, é incapaz de dar conta da evolução de estruturas irredutivelmente complexas. Behe, portanto, conclui que tais estruturas são indicativas de terem sido desenhadas.
O livro de Behe gerou uma grande controvérsia e tem recebido muitas críticas por parte de biólogos evolutivos. Frequentemente, isto aparenta ser uma postura defensiva dos biólogos evolutivos que o percebem, conscientemente ou inconscientemente, como uma crítica à sua cosmovisão materialista evolucionista. Mas deve-se ter em mente o que Behe está especificamente desafiando em seu livro. Ele não está desafiando a evolução como tal; ele acha “a ideia da ancestralidade comum (que todos os organismos compartilham um ancestral comum) razoavelmente convincente e não tem nenhum motivo particular para duvidar dela” (1996,4). Behe está desafiando primariamente o processo e o mecanismo chefe da evolução: a “descendência com modificação” de Darwin, com seleção natural como o meio principal de modificação. Ao invés de dar boas vindas ao diálogo e a crítica de um aspecto de uma teoria biológica com o desafio de desenvolver ainda mais a teoria, os fortes ataques verbais a Behe são provavelmente indicativos do fato de que uma cosmovisão materialista evolucionista está sendo enfraquecida.
Vários significados de evolução
Ao se discutir evolução, torna-se necessária a distinção entre os vários significados da palavra para que se evitem falhas de comunicação e pseudocriticismos. Keith Stewart Thomson escreveu um ensaio muito útil acerca dos significados de evolução e que é muito aplicável a esta discussão (1982, 529– 31). Thomson distingue três significados básicos: a evolução como padrão, a evolução como processo e a evolução como mecanismo. É importante reconhecer que há considerável evidência empírica para a evolução como padrão, como visto, por exemplo, no registro fóssil, nas homologias morfológicas e nas semelhanças na informação de sequencias de DNA. É principalmente este tipo de evidência que convence muitas pessoas (talvez incluindo Behe) da ancestralidade comum dos organismos. Há escassa evidência empírica, no entanto, para a evolução como processo – as etapas reais que podem ter trazido à tona o padrão da evolução que nós observamos. Além disso, embora haja evidência empírica para a seleção natural como o mecanismo da evolução em diversos casos, há escassa evidência empírica direta do mecanismo real que acarretou todos os processos da evolução independente da afirmação geral de que a seleção natural é o mecanismo básico para todos estes processos.
Behe aborda primariamente os mecanismos propostos em que se assumem como responsáveis pelo processo da evolução. Em particular, Behe questiona se o gradualismo da seleção natural Darwiniana é capaz de dar conta do processo. Muitos dos críticos de seu livro falham em reconhecer, ou pelo menos, falham em responder a essa questão primária. Suas respostas tipicamente focam em um apelo à verdade do padrão da evolução sem apresentar o que Behe afirma estar lamentavelmente faltando na teoria evolutiva. A crítica de Bruce Weber ao livro de Behe (1999) ilustra este problema. Por um lado, Weber critica Behe por sua seletividade do conhecimento em não abordar plenamente as pesquisas que tem sido feitas e continuam sendo feitas no campo da evolução molecular. No entanto, muitas das pesquisas que Weber referencia apresentam evidências para o padrão da evolução, como a informação proveniente de sequenciamentos, ao invés de evidência para o processo ou dos mecanismos reais da evolução. Weber também reconhece a intratabilidade do entendimento dos mecanismos pelos quais as estruturas supostamente irredutivelmente complexas podem ter surgido, o mesmo ponto em que Behe está tratando. Weber pode estar correto em seu comentário conclusivo “de que o estudo apropriado da complexidade biológica é seu aparecimento, suas trajetórias de desenvolvimento e suas linhagens evolutivas” (Weber 1999, 603); no entanto, estes estudos ainda não respondem à questão fundamental que Behe está abordando.
Uma fraqueza similar está presente na crítica feita por Miller da análise de Behe, que frequentemente o interpreta como rejeitando a ideia da evolução ao invés da seleção natural simples como o agente causal que explica a complexidade irredutível das células vivas (1999, cap. 5). Miller constantemente utiliza os termos evolução e seleção natural de forma intercambiável, como se eles fossem uma única e mesma coisa. Já que a ideia da evolução foi substanciada por tanta evidência empírica, Miller acredita que ele refutou a alegação central de Behe contra a seleção natural Darwiniana. Assim, a falta da distinção crítica entre padrão, processo e mecanismo na ideia de evolução , face às estruturas irredutivelmente complexas tornam sua crítica a Behe irrelevante.
O reducionismo do design inteligente
Os teóricos do DI consideram a evidência para estruturas irredutivelmente complexas e sistemas de informação complexas especificadas como evidência para o design inteligente e como agente causativo para tais estruturas e fenômenos. É válido notar que a maioria dos exemplos dos teóricos do DI estão no campo das coisas vivas. Mas por que é que as estruturas e processos no mundo biológico aparentam refletir design mais do que aquelas nos mundos não biológicos? Eu acho que existe um problema mais profundo. A afirmação de que estruturas irredutivelmente complexas como a estrutura e função do olho ou o flagelo bacteriano devem ser atribuídas ao design inteligente ainda implica na aceitação de uma ontologia reducionista. Isto, creio eu, é uma fraqueza fundamental do paradigma da teoria do DI. A questão em mãos tem sido e continua a ser uma questão central para a biologia: As coisas vivas são radicalmente diferentes das coisas não-vivas? Os fenômenos da vida são simplesmente um caso especial dos fenômenos físicos e químicos, ou os fenômenos da vida são pelo menos até certo grau irredutíveis a explicações físicas e químicas? Existem várias maneiras de se fazer essa questão, mas ela se resume ultimamente a se as coisas vivas são somente coisas físicas e químicas, sujeitas somente a leis físicas e químicas, ou não. A biologia é redutível à química e física? Ou os fenômenos da vida são sujeitos a princípios de ordens (leis) que são diferentes das e que se adicionam às leis físicas e químicas? Se as coisas vivas são irredutivelmente complexas, o que explica tal complexidade?
Esta questão central tem sido e continua a ser uma das questões que definem a história e filosofia da biologia. Ela estava no coração da controvérsia mecanicismo/vitalismo no século XIX, no surgimento do organicismo que substitui o vitalismo como antidoto ao mecanicismo no século XX, e, na minha visão, está no coração da discussão sobre o design inteligente. Eu concordo com os proponentes da teoria do DI de que uma interpretação reducionista/mecanicista do mundo vivo se origina de ou é motivada por um materialismo filosófico: matéria é tudo o que há. O termo fisicalismo seria uma designação apropriada para tal cosmovisão. A cosmovisão do materialismo tem dificuldade em dar conta de uma realidade não-material, seja ela a mente, a consciência, as emoções, ou mesmo a vida em si. Como consequência, biólogos que aderem a um materialismo filosófico são forçados a propor conceitos como propriedades emergentes e auto-organização para explicar os fenômenos da vida e as organizações irredutivelmente complexas na estrutura hierárquica dos sistemas vivos. Estes conceitos, no entanto, são um tanto vazios a não ser que uma explicação possa ser apresentada para as propriedades emergentes e auto-organização. Diferentes níveis de estrutura na organização hierárquica das coisas vivas revelam propriedades diferentes. Nós podemos talvez referir-nos a tais propriedades como emergentes se queremos dizer somente que elas são propriedades novas, não presentes em níveis hierárquicos inferiores. Mas fazê-lo não pode significar que nós explicamos tais propriedades com base nas estruturas e entidades constituindo os níveis inferiores. Tal explicação ainda é necessária para as assim chamadas estruturas e fenômenos biológicos emergentes.
Como um biólogo eu acho muitas das explicações sugeridas para as propriedades emergentes insatisfatórias. Elas falham em dar conta dos aspectos multidimensionais da nossa experiência das coisas vivas adequadamente. Eu tentei analisar e criticar algumas dessas explicações em uma publicação anterior acerca das teorias de hierarquia na biologia (Zylstra 1992). Central à minha crítica está a noção de que as coisas vivas são sujeitas a mais do que leis físicas e químicas. Neste aspecto eu apoio e aprecio a análise da escola de pensamento do DI em seus argumentos de que as coisas vivas possuem estruturas e expressam fenômenos que não podem ser explicados por causalidade física ou química.
Mas o que traz à tona a presença de estruturas irredutivelmente complexas e a existência de complexos sistemas vivos hierárquicos nos quais o todo não pode ser explicado pela soma das partes? O que dá conta do inter-relacionamento entre o todo e as partes?[5] O design inteligente é uma explicação adequada para tais estruturas e fenômenos bióticos? O DI apresenta a causalidade para as coisas vivas, especialmente aquelas estruturas e fenômenos que não podem ser explicados por leis químicas e físicas? E, se sim, de que maneira ele provê causalidade? O DI é realmente mais do que uma afirmação de que o universo é criado e sustentado por um ser inteligente ou por um Deus Criador? De que forma as explicações para a complexidade organizada do design inteligente diferem das explicações por leis físicas e químicas para estruturas e fenômenos físicos? Os fenômenos governados por leis físicas e químicas também não são desenhados? Este tipo é de design de uma natureza diferente do que outros tipos de design como, por exemplo, aquele revelado nas coisas vivas? Como o conceito de design inteligente está relacionado com a noção da contingência da criação ao Criador? O que significa contingência com relação às estruturas que são governadas por leis físicas e químicas? Ou somente as estruturas criadas por design inteligentes são contingentes ao ser inteligente?
Eu elogio a análise crítica por parte dos teóricos do DI acerca de se a seleção natural Darwiniana pode dar conta de estruturas irredutivelmente complexas. A biologia evolutiva, creio eu, necessita de tal análise crítica. A falha em reconhecer as deficiências da evolução Darwiniana como explanatória para o processo da evolução é a fonte da rejeição da teoria evolutiva por parte de muitas pessoas. Não obstante, eu não estou convencido de que o conceito de design inteligente apresente uma explanação alternativa adequada para a natureza do ser das coisas vivas. Em minha visão, a teoria do DI ainda trabalha a partir das premissas de uma ontologia reducionista, de que este mundo é governado somente por leis químicas e físicas. Ademais, de forma similar ao ponto de vista do materialismo físico, teóricos do DI aparentemente consideram tais leis químicas e físicas como autônomas, não como uma forma de contingência a Deus. Este reducionismo implica que as coisas vivas são sujeitas apenas às leis químicas e físicas. A ideia de que coisas vivas sejam sujeitas às leis bióticas em distinção e adicionalmente às leis químicas e físicas é estranha à mentalidade reducionista. Mas ela aparenta ser estranha também para a teoria do DI. Tal pensamento reducionista é revelado em uma percepção básica, comum entre biólogos, de que a vida é caracterizada pela matéria viva. Coisas vivas são geralmente consideradas como constituídas de matéria viva. Mas a conceitualização das coisas vivas como consistindo de matéria viva expõe o núcleo do problema: Como pode a matéria estar viva?
Reduzir uma coisa viva aos seus componentes materiais é arrancar-lhe o próprio caráter de se estar viva! Coisas vivas, no entanto, revelam uma dimensão não material (ou seja, não-física) que não pode ser capturada por seus constituintes materiais.
Então como nós damos conta dos fenômenos da vida? Nós precisamos começar com reconhecendo que toda a realidade é governada por lei. Não há nenhuma estrutura ou processo que não seja sujeita a leis ou princípios de ordenamento. A ciência por si mesma não seria possível em um universo que não é ordenado ou não é governado por leis. Isto inclui os fenômenos da vida e as estruturas e sistemas irredutivelmente complexos que são característicos das coisas vivas. Os padrões de estrutura e função revelados nas coisas vivas indicam que as coisas vivas são de fato sujeitas a princípios de ordenamento (leis). Se não fossem sujeitos a tais princípios de ordenamento, os fenômenos da vida não poderiam nem mesmo ser estudados ou observados.
Os proponentes da teoria do DI, no entanto, parecem desassociar o design inteligente de quaisquer leis naturais. Design inteligente é postulado como um agente causativo à parte ou em adição às leis naturais químicas e físicas. Isto implica, então, que Deus interage com o mundo natural por meio de duas vias diferentes: através de leis naturais e através da implementação do design de alguma forma fora da lei natural? Ou são as leis naturais percebidas como autônomas, livres de qualquer relação com Deus como sustentador da criação por meio de leis, enquanto o design inteligente implica na contingência de certas estruturas à um ser inteligente? Eu acho isto tão problemático quanto os princípios autônomos de auto-organização de estruturas irredutivelmente complexas como uma explicação para dar conta das coisas vivas. Isto indica um tipo de dualismo escolástico que divide a realidade ao longo da linha de natureza/supranatureza. Para evitar tal dualismo, nós precisamos de uma percepção mais compreensiva das leis e do reconhecimento de uma diversidade de leis naturais incluindo leis bióticas para coisas vivas.
Teísmo naturalista
Uma consequência negativa significativa do dualismo natureza/supranatureza escolástico é o desenvolvimento de uma visão da natureza como sendo autônoma e auto-existente. Deus é grandemente confinado ao domínio da supranatureza. Quando Deus está envolvido com a natureza, tal interação é então vista como uma interrupção do curso natural da causalidade da natureza. Nota-se que, portanto, Deus está intervindo nas leis naturais que governam a natureza mesmo quando tais leis são consideradas como sido estabelecidas por Deus em suas ações criativas. Esta visão dualista natureza/supranatureza da interação de Deus com o mundo resultou em algumas tensões e conflitos duradouros entre teísmo e ciência. David Griffin resume estas tensões de forma bastante clara em seu livro Religião e Naturalismo Científico: Superando o Conflito (2000). De acordo com Griffin, o conflito fundamental surge porque a cosmovisão científica mecanicista moderna pode aceitar somente causas naturais para o mundo físico e material. Esta cosmovisão rejeita qualquer ação divina no mundo porque ela vê a ação divina como interrompendo ou intervindo nas leis naturais. Tal intervenção divina poderia minar a fundação a priori da ciência que assume que os princípios fundamentais da causalidade jamais seriam interrompidos. Isto certamente ajuda a explicar a forte reação negativa por parte de muitos membros da comunidade científica à teoria do DI. Na medida em que o design inteligente é indicativo de ação especial divina, esta ação é percebida como uma intervenção na causalidade física/química normal em uma natureza autônoma e auto-existente. Uma fraqueza fundamental entre os teóricos do DI é que eles falharam em apresentar uma visão coerente e adequada da interação de Deus com o mundo. Se eles continuarem a teorizar dentro de um paradigma de natureza/supranatureza, eles terão dificuldade em incorporar o design inteligente dentro da teorização científica, porque esta é focada na natureza ao invés da supranatureza.
Griffin tenta resolver este conflito de um dualismo natureza/supranatureza propondo um teísmo naturalista que aceita a ação divina no mundo como uma cooperação divina-criatural, mas rejeita um ser divino supranatural que age por meio da interrupção da causação natural. O teísmo naturalista de Griffin, no entanto, me parece uma forma de síntese na qual o divino é necessário para dar conta de eventos como fenômenos não-sensoriais e experiências éticas e religiosas, experiências que são difíceis de explicar por causalidade física e química. Griffin não pode aceitar uma ação uma maneira interruptiva divina vinda de fora porque ele propõe uma presença divina dentro da natureza, uma presença que age de maneira persuasiva ao invés de intervencionista e coercitiva (2000, 93). Se esta forma de síntese, que tenta combinar uma forma radicalmente alterada de teísmo com uma forma radicalmente alterada de ciência naturalista, vai resistir à critica de ambas ciência e teologia ainda está para ser visto. Embora eu creia que Griffin esteja correto em rejeitar o naturalismo científico com seu reducionismo (2000, 176), a solução para tal reducionismo não está em redefinir a matéria para incluir o divino como estando presente na matéria.
O que eu acho interessante no teísmo naturalista de Griffin é o potencial teórico que tal visão tem para a teoria do DI. Além das crenças pessoais dos teóricos do DI, os argumentos que eles propõem para o design inteligente não necessariamente implicam um ser divino supranatural. O design inteligente poderia muito bem ser causado pela ação divina persuasiva da alma ou mente imanente universal que Griffin propõe. Em outras palavras, a realização das “formas eternas” que são o “material da persuasão divina” (Griffin 2000, 293) poderiam bem ser o design inteligente que Behe, Dembski e outros estão afirmando existir no universo.
Apesar de uma forma persuasiva de ação divina poder ser de certa forma mais palatável para um evolucionista Darwiniano do que uma forma coercitiva de ação divina, o teísmo naturalista de Griffin ainda vai contra muito da evolução Darwiniana tanto que ele mesmo deixa claro a rejeição de diferentes significados da evolução (2000, cap. 8). Por exemplo, o eterno, formas ideais do teísmo naturalista, seriam profundamente rejeitadas por Ernst Mayr, um importante biólogo evolutivo, em sua rejeição de qualquer forma de essencialismo e/ou forma de pensamento tipológico (Mayr 1982, 38–39). Além disso, todas as críticas de que o design inteligente não é testável, etc., são presumivelmente também aplicáveis à mente divina universal como um agente causal persuasivo no universo.
Outro ponto de vista alternativo ao materialismo científico é o Principio de Econômico Formacional Robusto proposto por Howard Van Till[6], que tem sido um duro crítico da teoria do DI. Sua crítica centra-se na visão que ele percebe como postulada pela teoria do DI de que um agente inteligente (um ser divino) deve agir de maneira intervencionista para trazer à tona as estruturas e sistemas projetados presentes no universo. Van Till argumenta que a criação é “plenamente dotada” (1999, 73) de forma que o desenvolvimento da criação ocorre sem nenhuma “lacuna ontológica”. Não há necessidade para Deus interromper os princípios causais na natureza e adicionar às capacidades na criação em uma forma de criacionismo episódico. Em outras palavras, de acordo com Van Till, a criação é dotada de um “Principio Econômico Formacional Robusto” (PEFR) que prevê a realização de todas as potencialidades que se realizam na “história formacional da criação” (2000, 214).
Este PERF, no entanto, necessita ser analisado mais a fundo. Uma questão é se ele é primariamente um principio epistemológico que provê uma explicação para coisas que nós não compreendemos completamente ou se ele é um principio ontológico que provê uma forma de causalidade para história formacional da criação. Se for um princípio epistemológico, ele parece funcionar como uma forma diferente do “Deus das lacunas” tentando apresentar uma explicação para um processo evolutivo ou de desenvolvimento que nós não entendemos completamente. Se for um princípio ontológico embutido na criação como uma capacidade formacional, qual é então seu status ôntico, e como ele funciona como um princípio de causalidade? Parece que qualquer nova estrutura que aparece ou se desdobra na história formacional da criação se deve a este princípio. As entidades na criação se tornam redefinidas de forma a possuírem quaisquer capacidades necessárias para a formação de estruturas mais complexas através de alguma forma de auto-organização. Por exemplo, “moléculas possuem as capacidades de interagirem de maneira que as levam a se organizarem em conjuntos moleculares com capacidades ainda mais marcantes, talvez até mesmo as capacidades que constituem a vida” (2000, 214). Alguém poderia perguntar se esta capacidade reside nas moléculas em si ou se reside na criação como um todo. Em outras palavras, a criação pode ter as capacidades para a formação de entidades vivas, mas não os átomos e as moléculas. Até mesmo o termo robusto parece implicar capacidades que se estendem para além das capacidades das entidades químicas e físicas sujeitas a leis químicas/físicas. Ademais, alguém poderia argumentar, não é a criação que está atualizando seu conjunto completo de potenciais, mas Deus é quem está atualizando as capacidades através das leis de Deus para a criação. Eu argumentaria que a “robustez” da criação na verdade implica leis bióticas que provêm os princípios causais para a “história formacional da criação”.
Ambas as visões envolvem um entendimento revisado dos conceitos de matéria. Ambas aparentam ser motivadas por uma reação ao conceito de Deus como um ser divino interventor. Talvez o que precisamos no lugar disto seja um supranaturalismo não-interventor, uma visão na qual Deus está continuamente envolvido com a criação e sustentando-a em todos os seus modos de ser.
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Lei como a relação entre Deus e a realidade criada
Isso leva à uma outra opção em resposta ao naturalismo metodológico para o teísta que crê que Deus está ativamente envolvido com a criação. Nós precisamos recapturar ou repensar o significado de lei como a relação entre Deus – o Criador – e a criação e todas as coisas na criação. Isso envolve uma análise mais profunda da natureza das coisas bem como das coisas vivas. Minha própria estrutura conceitual de análise é muito influenciada pela filosofia da ideia cosmonômica, ou a filosofia da ideia-de-lei, proposta por Herman Dooyeweerd, um filósofo jurista Holandês que empreendeu considerável esforço em tal análise[7]. Eu estou convencido de que Dooyeweerd não somente apresentou uma importante crítica do pensamento científico, que vê o mundo com autônomo, mas também fez uma grande contribuição para a análise dos modos de ser da realidade.
Para Dooyeweerd, lei é a relação entre Deus e toda a criação. Toda a realidade é concebida como governada por lei, como sujeitada às leis de Deus para a realidade. A lei é a condição para a existência da realidade criada, incluindo as coisas vivas. Tudo que existe só pode existir enquanto sujeito às leis para sua existência e comportamento. Sem as leis estruturais, por exemplo, para um carvalho ou um esquilo, não haveria nenhum carvalho ou esquilo. Tais leis são tipicamente referidas como leis naturais[8]. Leis naturais são aqui concebidas como leis estruturais, em oposição às leis normativas que valem para o comportamento humano e podem ser desobedecidas por sujeitos humanos. Além disso, leis naturais não estão limitadas ou esgotadas por leis químicas e físicas. Há uma diferenciação de leis que valem para cada um dos aspectos modais diferenciados da realidade, incluindo o modo de ser biótico. Estruturas e fenômenos biológicos também são governados por lei, e estruturas ou fenômenos biológicos são explicados porque eles estão sujeitos a leis bióticas em adição às leis químicas e físicas[9]. Isso elimina o design inteligente? Eu creio que não. Eu afirmaria que toda a realidade é contingente ao Criador e que toda realidade governada por lei é um indicativo do design inteligente. Leis naturais, incluindo as leis bióticas, são o fundamento para a presença e reconhecimento de design inteligente no mundo. Estruturas químicas também revelam design, embora tais estruturas sejam governadas por leis químicas e físicas para o mundo material e, portanto, podem ser explicadas por leis químicas e físicas.
A análise de Dooyeweerd é talvez melhor ilustrada em sua discussão sobre a estrutura de uma coisa (1957, vol. III, cap. 2). Dooyeweerd concebeu cada coisa como tendo duas dimensões, o lado lei e o lado sujeito. Pode ser útil conceituar essas dimensões como duas metades de uma esfera, com uma metade sendo o lado lei e a outra o lado sujeito, como ilustrado na Figura 1. O lado sujeito é a atualização do lado lei. Essa conceitualização aponta a importante distinção entre o lado lei e o lado sujeito de cada coisa. Nós experimentamos a natureza governada por lei através do lado sujeito de cada coisa, ou seja, como cada coisa é sujeita à estrutura de lei (indicada pelas linhas na figura) para as coisas no mundo criado. Nós não experimentamos o lado lei de cada coisa diretamente.
Figura 1. Representação diagramática de uma coisa. Note que a natureza da lei como a relação entre Deus e cada coisa.
As leis que valem para cada coisa individual são em si mesmas inacessíveis à nossa experiência direta. Nós experimentamos as coisas do mundo criado somente enquanto são sujeitas às leis que valem para as estruturas individuais. Como consequência, nosso entendimento das leis para a realidade é necessariamente indireto e impreciso. Nós podemos apenas começar a aproximar o caráter das leis naturais em nossas mentes. Nesse aspecto, uma importante distinção deve ser feita entre nossa descrição da lei e a lei em si mesma. Nossas descrições ou afirmações de lei não são os princípios governantes em si. Nós podemos descrever o comportamento padronizado das coisas e formular afirmações de lei somente porque estas coisas são sujeitas a leis. Mesmo aquilo que chamamos de lei da gravidade é somente uma descrição (quantitativa) de nossa experiência de como as coisas são sujeitas à lei física da atração de corpos entre si. A falha em fazer essa distinção entre leis e as afirmações de lei humanas tem levado a uma frequente confusão sobre o entendimento correto da lei como a condição para a existência de todas as estruturas no mundo criado. Talvez esta seja a razão do porque pareça haver uma infeliz relutância a sequer referir às leis como os princípios governantes da realidade.
Mesmo que alguém rejeite a noção de que as leis sejam a relação entre Deus e a criação, isso não necessariamente leva à negação da existência de leis. A realidade ainda é ordenada, e essa ordem reflete princípios ordenadores e leis que expliquem tal ordem. A pesquisa científica assume e requer um universo ordenado como fundamento de qualquer pesquisa. Nesta perspectiva, as leis presumivelmente seriam imanentes, originando-se ou residindo dentro de cada coisa, como indicado na Figura 2. Cada coisa é sujeita a leis diferenciadas que governam a existência de cada coisa. Para coisas vivas, isso inclui leis bióticas diferenciadas que valem para fenômenos bióticos.
Figura 2. Representação diagramática de uma coisa auto-existente na qual a lei é vista como imanente.
Leis bióticas
Tendo dito isto, podemos começar a formular algumas afirmações de lei para fenômenos bióticos que refletem as coisas vivas como estruturas e fenômenos governados por lei? Nós tipicamente reconhecemos através de regularidades e padrões no mundo de nossa experiência. Para começar, algumas afirmações de lei que são uma descrição de leis bióticas seriam (1) a lei de que, na reprodução, semelhante gera semelhante; (2) a lei da divisão celular de que todas as células vêm de células; (3) a lei da seleção natural; (4) as leis de acasalamento e cortejo que definem muitas formas de comportamento animal; e (5) as leis do desenvolvimento que definem as várias regularidades e padrões que nós observamos.
Pode ser útil apresentar uma discussão expandida de uma lei biótica tal como a lei da divisão celular. A divisão celular é um fenômeno que em sua regularidade e precisão aparenta muito ser governado por princípios de ordenamento biótico. Há um padrão complexo de integração da divisão celular e atividade molecular que caracteriza o processo de divisão celular. Numerosos genes e proteínas de divisão celular já foram identificados e que apresentam um importante papel na regulação do processo de divisão celular. Mesmo assim, o processo de divisão celular é uma característica da célula como um todo, não da coleção de genes e proteínas que estão envolvidos no processo de divisão celular. Moléculas regulatórias da divisão celular não controlam em si mesmas o processo de divisão celular. Os genes e proteínas estão ligados à célula como uma entidade viva. Enquanto moléculas, proteínas e ácidos nucleicos continuam a funcionar como estruturas químicas e físicas dentro da célula e que são sujeitas às leis químicas e físicas. Mas seus papéis e atividades específicos são orquestrados pela célula como um todo. A célula é sujeita a princípios de ordenamento que governam essa orquestração na configuração espacial e temporal da célula. Por exemplo, a divisão e migração dos centríolos, a organização espacial do fuso mitótico, o enovelamento dos cromossomos em estruturas compactas, e a sincronia sequencial de todos estes eventos dinâmicos são indicativos de princípios de ordenamento que vão além das propriedades dos constituintes moleculares. Há um programa da célula que suplanta o programa genético que provê a informação para a síntese das numerosas proteínas e outras moléculas que desempenham um papel crítico em todas estas atividades. Este é essencialmente o ponto que Steven Rose faz em sua crítica do reducionismo em seu livro Lifelines: “o funcionamento da célula, como uma unidade, restringe as propriedades de seus componentes individuais. O todo tem primazia sobre suas partes” (Rose 1997, 169).
A teoria da Enkapsis
A relação dos constituintes moleculares à célula como um todo ou, de forma mais ampla, dos componentes de um nível de organização que estão inclusos dentro de um nível de organização mais elevado é referido por Dooyeweerd como um relacionamento enkáptico[10]. Um elemento chave da teoria da enkapsis é que os constituintes do nível inferior são vistos como todos dentro de um nível mais elevado, ao invés de meramente como partes de um nível mais elevado como no conceito “o todo é maior que a soma de suas partes.” Relações todo-todo diferem de relações parte-todo. Em uma relação parte-todo as partes são qualificadas pela mesma função que qualifica o todo. Portanto, se o todo é qualificado pela função biótica porque é governado por leis bióticas, as partes também seriam qualificadas e governadas por leis bióticas. Isso implicaria que moléculas dentro de células também são governadas por leis bióticas que controlam a célula como um todo. Este simplesmente não é o caso. As moléculas dentro das células mantêm sua integridade como moléculas, sujeitas às leis químicas e físicas e, portanto, como todos e não como partes. As células, por sua vez, estão sujeitas aos princípios bióticos de ordenamento, e elas envolvem (encapsulam) as entidades moleculares que estão contidas nas células. Esse encapsulamento encontra expressão em como os constituintes moleculares são orquestrados em seu funcionamento químico dentro da célula, de tal forma que a célula funciona como uma entidade viva, um todo vivo. Esta orquestração reflete um design inteligente? Reflete da mesma forma que a estrutura do sistema solar ou de uma molécula de hemoglobina reflete design. Mas o design é atribuível a algumas leis bióticas análogas às leis físicas e químicas que acarretam o design de moléculas e sistemas solares.
O mesmo se aplicaria às estruturas e sistemas irredutivelmente complexos que Behe alega serem planejados e desenhados (1996, cap. 9). Eu concordaria com Behe que “A vida na Terra em seu nível mais fundamental, em seus componentes mais críticos, é produto da atividade inteligente” (p. 193). Mas o design inteligente em si não é o agente causativo. Em vez disso, é o designer trabalhando através de leis bióticas para a estrutura do flagelo bacteriano, através de leis bióticas para a estrutura do cílio, e através de leis bióticas para sistema de coagulação sanguínea que acarretam tais estruturas e processos. O mesmo se aplica ao desdobramento de organismos durante o desenvolvimento do zigoto para o organismo adulto. Processos morfogenéticos ocorrem em um organismo sujeito às leis que regem o desenvolvimento desse organismo. Tal desenvolvimento envolve a expressão e regulação de informações hereditárias. A ênfase não pode estar na expressão da informação hereditária, mas em como o organismo incorpora enkapticamente essa informação em sua morfogênese. O mesmo conceito pode ser aplicado ao desenvolvimento evolucionário dos organismos. Organismos não são o resultado de mutações e seleção de material hereditário[11]. Eles são o resultado de leis bióticas e morfogenéticas que sustentam o desenvolvimento e a evolução dos organismos. A este respeito, devemos reconhecer, no que diz respeito à evolução, que as coisas vivas podem evoluir; as leis não. Qualquer evolução ou desenvolvimento está sujeito às leis que governam esses processos. É precisamente através de tais leis que Deus está interagindo com a criação para produzir todas as criaturas e ecossistemas que observamos. Isso é sem dúvida uma forma de desenvolvimento evolucionário, mas é radicalmente diferente de uma forma de evolução Darwiniana, materialista e autônoma. Esta forma de Deus interagindo com a criação não é, portanto, aquela na qual Deus intervém na criação ou na qual Deus interrompe as leis físicas e químicas para a criação. Pelo contrário, é aquela na qual Deus sustenta a criação através de leis bióticas, bem como através de leis físicas e químicas.
Conclusão
Isso elimina o design? De modo nenhum. No entanto, remove o design como o agente causador imediato. Em vez disso, enfatiza-se o fato de que a irredutibilidade das coisas vivas é devida à irredutibilidade das estruturas de lei para modos mais elevados de ser. Essa irredutibilidade é a base para as estruturas irredutivelmente complexas características das coisas vivas. Essa irredutibilidade é também indicativa da descontinuidade dos níveis de ser e, portanto, dos níveis de organização. Níveis mais altos não emergem simplesmente dos níveis inferiores; leis para níveis mais altos não emergem de leis para níveis inferiores. A vida não é uma substância material que pode ser reduzida na análise de suas propriedades químicas e físicas. A vida é uma função das coisas vivas que estão sujeitas às leis bióticas.
Eu acredito que a discussão sobre o design inteligente é muito benéfica, mas fica aquém de uma explicação adequada da realidade. O design está presente em todos os níveis da realidade, incluindo os níveis físico e químico. De fato, o design é basicamente um reflexo da realidade governada por lei, da maneira pela qual Deus interage com toda a criação.
REFERÊNCIAS
Behe, Michael J. 1996. Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution. New York: Free Press.
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Dembski, William A. 1998a. The Design Inference. Cambridge: Cambridge Univ. Press. ———. 1998b. “Redesigning Science.” In Mere Creation: Science, Faith and Intelligent Design, ed. W. A. Dembski. Downers Grove, Ill.: InterVarsity.
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Dooyeweerd, Herman. 1957. A New Critique of Theoretical Thought. 4 vols. Philadelphia: Presbyterian and Reformed Pub. Co.
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Kalsbeek, L. 1975. Contours of a Christian Philosophy. Toronto: Wedge.
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Rose, Steven. 1997. Lifelines: Biology beyond Determinism. New York: Oxford Univ. Press.
Stafleu, Marinus Dirk. 1999. “The Idea of Natural Law.” Philosophia Reformata 64:88–104.
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Van Till, Howard J. 1999. “The Fully Gifted Creation.” In Three Views on Creation and Evolution, ed. J. P. Moreland and John Mark Reynolds. Grand Rapids,
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Zylstra, Uko. 1981. “Dooyeweerd’s Concept of Classification in Biology.” In Life is Religion: Essays in Honor of H. Evan Runner, ed. Henry Vander Goot. St.
Catharines, Ontario: Paideia.
———. 1992. “Living Things as Hierarchically Organized Structures.” Synthese 91:111– 33.
[1] Uko Zylstra é Professor Titular de Biologia no Calvin College, 3201 Burton St. SE, Grand Rapids, MI 49546; e-mail zylu@calvin.edu.
[2] Eu estou usando a palavra contingente no sentido de “dependente de ou condicionado por outra coisa”.
[3] Um bom exemplo desta posição reducionista e mecanicista é a de Jacques Monod, laureado com o Nobel (1972).
[4] Além do livro de Dembski Design Inteligente (1999), veja sua análise técnica da especificação em seu livro A Inferência de Design (1998).
[5] Embora o uso da palavra partes é comumente utilizado neste contexto, eu creio que há um equívoco, porque para algo ser uma parte implica que sua estrutura e suas propriedades sejam definidas pelo todo. Há vários componentes de coisas vivas, como moléculas de água, que não são definidos ou determinados pela célula ou pelo organismo vivo como um todo. Para uma discussão mais profunda veja minha análise acerca dos relacionamentos parte-todo em Zylstra 1992.
[6] Para uma apresentação do Principio Econômico Formacional Robusto de Van Till, veja seus artigos sobre “The Fully Gifted Creation” (1999) e “Partnership Response” (2000).
[7] A apresentação da filosofia de Dooyeweerd está contida na sua obra de quatro volumes A New Critique of Theoretical Thought (1957). Uma introdução mais legível (palatável) à filosofia da ideia cosmonômica é apresentada por L. Kalsbeek (1975).
[8] Para uma discussão expandida acerca do significado de lei natural veja Stafleu 1999.
[9] Dooyeweerd na verdade distingue o modo sensível (psíquico) de ser que caracteriza o mundo animal como um modo de ser adicional ao aspecto biótico que, na sua opinião, caracteriza o mundo vegetal. Ele está tentando fornecer a base para distinções radicais entre os reinos animal e vegetal. Acredito que sua análise é limitada pela visão de dois reinos que prevalecia na época em que ele desenvolveu sua teoria dos aspectos modais. Em um artigo anterior (Zylstra, 1981) defendi uma diferenciação adicional dos aspectos modais e distingui entre os modos de ser biótico, morfogenético e sensível (psíquico) que qualificavam, respectivamente, os reinos protista, vegetal e animal. Por conveniência, contudo, para os propósitos deste ensaio, eu me refiro coletivamente a esses três modos de ser como o modo biótico de ser.
[10] Para uma discussão expandida da teoria da enkapsis de Dooyeweerd ver a Parte 3 no vol. III (1957).
Uma análise sumária da teoria da enkapsis é também apresentada no meu artigo “Living Things as Hierarchically Organized Structrures” (1992).
[11] Brian Goodwin (1994) apresenta uma excelente crítica do pensamento genocêntrico e faz um forte caso para uma perspectiva organocentrica.
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