Malcolm Jeeves

Confira um trecho do livro:

Mentes, Cérebros, Almas e Deuses – Uma conversa sobre fé, psicologia e neurociência – Malcolm Jeeves


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2 - Associação Brasileira de Cristãos na Ciência: ABC²


Prefácio

Robert Boyle, ilustre cientista e membro da Sociedade Real, descreveu como, enquanto estava em Genebra em um feriado europeu, passou por uma conversão do cristianismo nominal e irrefletido para o cristianismo comprometido. Como consequência dessa experiência, enfatizou a necessidade de que os cristãos tivessem o que ele chamou de uma “fé ponderada”[1].[1]

John Stott, ao discutir a carta de Paulo aos cristãos em Filipos, chamou a atenção para a importância de que todos os cristãos atentem à exortação do apóstolo e “combatam pela fé do evangelho” [Filipenses 1.27]. Ele acrescenta que “isso descreve a combinação de evangelismo e apologética, ou seja, não apenas proclamar o evangelho, mas também defendê-lo e argumentar a favor de sua verdade”.[2]

Em eco aos pontos de vista de Robert Boyle e John Stott, Mark Noll disse: “Se aquilo que afirmamos a respeito de Jesus Cristo é verdadeiro, os evangélicos deveriam estar entre os mais ativos, mais sérios e mais abertos defensores do conhecimento humano em geral”.[3]

Os relatos do Novo Testamento acerca da expansão do evangelho cristão — as boas novas do divino amor redentor em Jesus Cristo — ilustram claramente como o evangelho tanto aquece o coração quanto envolve a mente. Não são mutuamente excludentes; antes, reforçam-se reciprocamente. À medida que o amor de Deus em Cristo aquece o coração e envolve as emoções, gera o desejo de conhecer mais; à medida que a mente entra na viagem de descoberta, aquilo que se aprende aquece o coração ainda mais, e assim por diante. Os resultados da pesquisa em psicologia e assuntos correlatos como neurociência produzem novos desafios para que nossa geração desenvolva uma “fé ponderada”, envolvendo tanto o coração quanto a mente.

Parece que estudantes universitários estão respondendo a esses desafios. O ingresso em cursos de psicologia em faculdades e universidades cresce sem parar há meio século, uma tendência que não mostra sinais de baixa. O conteúdo dos cursos varia muito; de qualquer forma, os alunos que querem se graduar em psicologia normalmente cobrem uma série de tópicos centrais.

Existem diferenças de país a país em relação à fé dos estudantes que fazem as matérias básicas de psicologia. Uma sondagem de mais de 100 mil calouros universitários na Califórnia mostrou que 80% deles creem em Deus, 70% admitem lutar com questões fundamentais sobre o sentido da vida, e mais de dois terços oram. Esse quadro geral foi confirmado pelas informações mais recentes do The American Freshman [O calouro americano], uma sondagem anual de 250 mil estudantes ingressantes em todos os tipos de faculdades e universidades americanas realizada pela Universidade da Califórnia em Los Angeles.[4] Verificou-se que todos os estudantes, com exceção de 22 por cento, afirmam algum tipo de afiliação religiosa. Não conheço números recentes comparáveis no Reino Unido, mas pesquisas da população geral sugerem que uma porcentagem muito pequena dos alunos ingressantes em cursos de psicologia admitiria crer em Deus ou ser religiosa.

A estudante cristã que faz psicologia na Grã-Bretanha pode se achar uma figura solitária. As crenças que traz de sua igreja local parecem, às vezes, entrar em conflito com as declarações de seus professores, especialmente em assuntos como psicologia evolutiva e neuropsicologia. O típico estudante nos Estados Unidos — e isso mais do que no Reino Unido — gozará mais provavelmente do benefício da amizade com colegas cristãos, mas há indícios que mostram que a maioria até dos alunos americanos luta com questões que surgem à medida que suas crenças religiosas parecem entrar em conflito com o que lhes é ensinado nas aulas de psicologia.

Ouça o clamor angustiado que um amigo meu recebeu de um estudante de psicologia de uma importante universidade americana. Só isso já justificaria a redação deste livro. O estudante escreveu o seguinte:

Olá! Fiz o curso preparatório avançado de psicologia por um semestre no ensino médio usando seu livro de psicologia … sou cristão devoto, embora ainda esteja investigando os pormenores do que creio como cristão…. Atualmente estou fazendo o curso de introdução à psicologia na faculdade e, após apenas um dia de aula, já me sinto desanimado em relação à fé. Não acho que meu professor seja cristão (Que surpresa! hahaha), e o livro fala, obviamente, sobre como tudo que fazemos tem base na genética ou na experiência, e sobre como não temos livre-arbítrio, porque todos nossos pensamentos e ações são basicamente um único reflexo estendido — uma longa série de eventos de experiências e associações que reagem com nossos genes, e assim por diante.

Eu me sinto estranho, como se tivesse algo preso na minha garganta ou no meu coração enquanto leio o livro. A ideia de que tudo que nos diz respeito se baseia na genética ou na experiência parece conflitar com a ideia de livre-arbítrio e me faz questionar quem exatamente eu sou, se sou apenas uma combinação de coincidências; e ainda assim o que mais me incomoda é que isso parece perfeitamente correto — eu não consigo pensar numa alternativa à ideia de que “natureza (nature) versus cultura (nurture) = mim”. O livro também fala sobre como não temos almas (ou ao menos deixa isso implícito), porque estamos diretamente conectados com nossos corpos físicos (nossos cérebros). Isso bem poderia ser verdade — não estou totalmente certo se creio numa alma literal, ao menos uma alma separada do corpo, mas acho que creio que deve haver algo em nós que seja mais do que meramente órgãos, algo feito à imagem de Deus, algo diferente dos animais que tenha o potencial de existir eternamente (se bem que a Bíblia afirma que receberemos novos corpos ou coisa assim… embora isso resolva parte do meu dilema, o fato de que os corpos seriam “novos” não faria de nós pessoas diferentes, já que nós somos o que nossos corpos nos fazem?).

O curso será um desafio para mim, e não quero apenas concluí-lo me sentindo firme ou até mais firme na fé, mas também quero conseguir defender minha fé, caso depare com uma situação do tipo — principalmente se na minha turma houver outros cristãos com dúvidas.

Então, não sei exatamente o que estou pensando, mas o senhor é a primeira pessoa que me passou à mente. Gostaria de saber se o senhor ou algum de seus colegas tem ideias, conselhos ou informações que me ajudem na minha própria reflexão e me ajudem a passar pelo curso de psicologia, já que tenho certeza de que o senhor têm pensado muito sobre ideias parecidas ao longo de seus estudos e docência… Ficaria grato com qualquer coisa, pequena que fosse, onde eu possa me apoiar.

Nenhum aluno tem tempo para tudo. Todos se sentem pressionados. Mesmo que tivessem vontade de consultar o número cada vez maior de livros de peso que discutem os desafios apresentados pelos avanços na ciência à fé cristã tradicional, simplesmente não haveria tempo o bastante. É comum que essas obras reúnam importantes cientistas, filósofos, teólogos e biblistas. Embora colaborem significativamente para os debates correntes, por serem escritos de especialistas para especialistas, às vezes são de difícil leitura para amadores interessados.

Tive o privilégio de participar de alguns desses encontros, mas às vezes saí me sentindo chateado, porque algumas das palavras tão úteis e sábias que ouvi não seriam compartilhadas para um público mais amplo.[5] Alguns dos encontros resultaram em livros, mas mesmo assim as discussões eram com frequência em um nível não muito acessível a quem não é especialista nas respectivas áreas. No que vem a seguir, fiz o melhor para compartilhar algumas dessas ideias e comentários com um universitário típico que se lança no estudo do campo da psicologia.

O estudante cristão que participa do grupo local da IVCF nos Estados Unidos ou UCCF na Grã-Bretanha[2] se torna membro de um grupo que tem por objetivo compartilhar a fé com outros estudantes. O evangelismo pessoal deve ser encorajado, como o foi cinquenta anos atrás, quando apareceu um artigo — primeiramente na Inter Varsity, a revista estudantil da UCCF britânica, e depois reimpresso na revista HIS, a publicação estudantil da IVCF nos Estados Unidos — que pintava um cenário de evangelismo estudantil em ação. A mensagem ainda é relevante. Considere os seguintes trechos (claro, levando em conta que foi escrito cinquenta anos atrás):

Venha, então, e me acompanhe no centro estudantil [student union] de qualquer faculdade, e ouça um membro da IVCF conversando com outro estudante enquanto bebem uma coca. Ele conseguiu (com alguma dificuldade e um pouco de oração) conduzir a conversa para “assuntos espirituais” e agora segue sua forma costumeira de entrar no assunto do evangelho.

Vai tudo bem até que ele descobre que seu amigo não-cristão tem dificuldades intelectuais em relação a assuntos que nunca considerou antes. Assim, acha difícil acreditar que sejam questões genuínas. Como não conseguiria responder satisfatoriamente, pressupõe que são apenas uma desculpa para dificuldades morais. Seu amigo apresenta essas dúvidas apenas para evitar que entrem no assunto das “questões de verdade”. Segue-se um período de esgrima verbal… Seu amigo simplesmente não quer ficar cara a cara com a mensagem do evangelho. Afinal, que outro motivo haveria? O estudante cristão acha que conseguiu demonstrar com clareza como as perguntas do amigo podem ser facilmente respondidas. Além disso, as dúvidas não lhe parecem interessantes ou importantes. São obviamente apenas um desvio de assunto.

O artigo termina dizendo:

É fácil demais pressupor que qualquer dúvida seja um desvio de assunto. Prefiro sugerir que as dificuldades intelectuais não precisam ser impedimentos desgastantes que interferem em nosso trabalho pessoal, mas, sim, portas que talvez abram para a vida eterna. Disposição para pensar com nossos amigos sobre esses problemas se transformará em prova de amizade e será uma forma de ganhar confiança na sinceridade de coração e honestidade intelectual mútuas. Contatos feitos dessa maneira podem levar a amizades próximas e proveitosas tão bem quanto contatos feitos em times esportivos ou no laboratório.[6]

Hoje, passado mais de meio século, há um crescente reconhecimento entre os cristãos, nas palavras do popular livro Moving Toward Emmaus [No caminho de Emaús], de David Smith, de que, “enraizado no cerne da narrativa cristã, é o princípio de que a fé genuína não pode ser forçada… Quando o cristianismo se tornou a religião dominante na Europa, conquistando prestígio social e poder político, rapidamente se esqueceu do exemplo de seu Fundador e inventou uma nova série de métodos para coagir as pessoas a jurar lealdade a essa religião e, então, para se assegurar que nunca a abandonariam”.[7]

Hoje, argumenta Smith, devemos reconsiderar o Cristo do caminho de Emaús, que retratou o próprio Deus de uma forma revolucionária como “o Pai que espera” (Lucas 15.11-32). Temos o privilégio de caminhar com parceiros na dúvida e confusão, lembrando, como disse Smith, que, ‘com a remoção de todo o aparato e apoio social da cristandade, os cristãos perceberam que o próprio evangelho continha um imperativo exigindo a rejeição, de uma vez por todas, do ‘Deus obrigatório, compulsório, que os cristãos impunham sobre os outros seres humanos, anulando suas mentes e consciências e até ameaçando com sanções no caso de inconformismo’”.[8]

Meu contato com estudantes de psicologia no decorrer de mais de meio século me alertou para os problemas reais com que eles deparam. Foi por esse motivo que, mais de cinquenta anos atrás, escrevi o artigo para a revista HIS citado acima. Conferi minhas próprias impressões com a opinião valiosa de dois professores de psicologia no Hope College, nos Estados Unidos, David Myers e Thomas Ludwig, que recentemente ofereceram um curso de um semestre sobre psicologia e religião. Muito gentis, registraram as perguntas genuínas que os estudantes faziam ao longo do curso. Quando as confrontei com as questões que já conhecia por meu contato pessoal com alunos, alguns temas centrais recorrentes apareceram. Neste pequeno livro eu me envolvi em um diálogo com um aluno imaginário, à medida que ele avança em seu bacharelado em psicologia na faculdade e encara essas perguntas centrais.

Problemas e dúvidas não se encerram com a formatura. Um estudante de pós-graduação em engenharia em um país do Extremo Oriente escreveu recentemente a um cristão norte-americano, que foi meu amigo de faculdade, para pedir ajuda após ler um livro de sua autoria. O estudante escreveu o seguinte: “Fé é algo que quero desesperadamente, mas acho difícil reconciliá-la com as realidades da ciência e do mundo ao meu redor”. Seus e-mails para meu amigo levaram a uma série de conversas nas quais meu amigo compartilhou com o estudante partes do esboço inicial deste pequeno livro, que aborda algumas das questões que ele levantou. O estudante as achou úteis. Espero que você, leitor, também ache. Pessoas de todos os tipos de formação acadêmica e carreira lidam com desafios atuais à sua fé. Este mês li de um professor cristão de física em um país sul-americano que escreveu assim: “Acho que um dos maiores desafios é integrar minha fé com meu trabalho acadêmico … Tal desafio exige reflexão, e é útil saber como pessoas em outros lugares e em situação parecida o superaram”.[9] Espero que minha experiência, exposta nestas páginas, o ajude, bem como a outros como ele.

Os tópicos abordados não são necessariamente os mesmos a respeito dos quais acadêmicos de peso mencionados anteriormente tenham escrito, embora haja sem dúvida alguns pontos em comum. São perguntas de verdade feitas por estudantes de verdade que querem ser intelectualmente honestos, ter a fé ponderada de Robert Boyle, e que querem, como John Stott sugere, uma “combinação de evangelismo e apologética, ou seja, não apenas proclamar o evangelho, mas também defendê-lo e argumentar a favor de sua verdade”.[10] Precisamos de cristãos prontos para andar no caminho de Emaús, na companhia do Cristo ressurreto com outros discípulos que ficam, por vezes, perplexos.

Todos temos perguntas e enigmas sobre aspectos de nossa fé e podemos encontrar apoio e encorajamento mútuos quando as compartilhamos honestamente. Precisamos desse compartilhar encorajador, pois, como nos lembrou N.T. Wright, “existe uma inverdade persistente que se insinuou na imaginação popular de nossa época: que cristianismo significa fechar a mente, encerrar todo pensamento sério e viver num raso mundo de fantasia, distante das verdades concretas da ‘vida real’”. “Mas”, conclui o autor, “a verdade é que o cristianismo genuíno abre a mente [como Paulo diz ao longo desta carta (aos efésios) e em seu complemento, a carta aos Colossenses], de modo a poder compreender a verdade em níveis cada vez mais profundos”.[11]

Quase meio século atrás, C. S. Lewis escreveu Oração: cartas a Malcolm.[12] Sempre as achei úteis e alentadoras. Com essas cartas em mente e em contato diário com colegas, alunos e amigos por e-mail, empreguei o formato atual de cartas neste pequeno livro.

À medida que a correspondência eletrônica progredia, os tópicos levantados por estudantes em minha experiência pessoal ao longo de muitos anos e pelos alunos de David Myers e Thomas Ludwig começaram a se enquadrar naturalmente numa série de temas. Agrupei as mensagens de e-mail de acordo com esses temas e tópicos.

Para quem dispuser de tempo e motivação para se aprofundar ainda mais em algumas das questões abordadas, ofereço nas notas finais, bem como na seção de “Leitura complementar” no fim do livro, referências a fontes atualizadas que normalmente estão disponíveis em bibliotecas universitárias ou na internet. O material ali listado provê informações mais detalhadas sobre alguns dos comentários e afirmações enigmáticas que comumente ocorrem em correspondências eletrônicas.


Referências:

[1] Nota Editor: original “examined faith”
[2] IVCF e UCCF correspondem no Brasil à ABU — Aliança Bíblica Universitária. [N. do. T.] [1] J. J. MacIntosh e Peter Anstey, “Robert Boyle”, em Stanford Encyclopedia of Philosophy, outono de 2007, <http://plato.stanford.edu/archives/fall2007/entries/boyle/>.
[2] John Stott, Through the Bible, Through the Year (Grand Rapids: Baker, 2006), p. 370 [publicado em português com o título A Bíblia toda, o ano todo: meditações diárias de Gênesis a Apocalipse (Viçosa: Ultimato, 2007)].
[3] Mark Noll, Jesus Christ and the Life of the Mind (Grand Rapids: Eerdmans, 2011), x.
[4] Christopher Bugbee, “A Higher Purpose for Higher Education”, Milestones, Fundação John Templeton, junho de 2005, <www.templeton.org>.
[5] Malcolm Jeeves (ed.), Human Nature, baseado em conferência na Sociedade Real de Edimburgo (Edimburgo: The Royal Society of Edinburgh, 2006); Jeeves (ed.), From Cells to Souls—and Beyond: Changing Portraits of Human Nature (Grand Rapids: Eerdmans, 2004); Jeeves (ed.), The Emergence of Personhood: A Quantum Leap? (Grand Rapids: Eerdmans, no prelo).
[6] Malcolm Jeeves, “Not All Herrings Are Red”, HIS Magazine (fevereiro de 1959): 11-15.
[7] David Smith, Moving Toward Emmaus: Hope in a Time of Uncertainty (Londres: SPCK, 2007), pp. 60-61, grifo meu.
[8] Ibid., p. 61.
[9] International Felllowship of Evangelical Students, carta de oração, 2011.
[10] Stott, Through the Bible, p. 370.
[11] Tom Wright, Paul for Everyone: The Prison Letters, 2. ed. (Louisville: SPCK/Westminster John Knox, 2004), p. 51.
[12] C. S. Lewis, Letters to Malcolm: Chiefly on Prayer (Londres: Geoffrey Bles, 1964) [publicado em português com o título Oração: cartas a Malcolm (São Paulo: Vida, 2009)].


Capítulo 1

O que é psicologia? Como devemos abordá-la?

Ben,

Seu pai sempre me deixa a par do progresso seu e de seus irmãos na escola. Ele me contou que você foi aceito na universidade onde tanto queria estudar. Parabéns. Suas notas devem ter sido boas para você chegar onde chegou num ambiente tão concorrido. O departamento de psicologia tem uma grande reputação. O curso de psicologia de cada universidade tem seus pontos fortes em particular, dependendo dos interesses acadêmicos dos docentes. O seu curso é bem conhecido pelo rigor científico e por concentrar-se em áreas da psicologia que coincidem com a neurociência e a biologia evolutiva. Se acaso o departamento tiver um curso rápido sobre a história da psicologia, eu o aconselharia a fazê-lo. É muito importante saber como a psicologia chegou aonde se encontra hoje. Ajuda a colocar em perspectiva as tendências atuais.

Malcolm,

Obrigado! Estou empolgado por estar aqui e me pego pensando no que enfrentarei nas aulas de psicologia. Para ser honesto, meus pais não estão muito entusiasmados em que eu estude psicologia. Acham que isso pode destruir minha fé cristã. Quais reações o senhor recebe das pessoas, principalmente outros cristãos, por ser professor de psicologia?

Ben,

Minha resposta: as reações são variadas. Infelizmente, alguns cristãos encaram a psicologia como arqui-inimigo da fé, uma visão talvez reforçada por pesquisas de acadêmicos americanos que mostram que professores universitários de psicologia são o grupo menos religioso. Diante do tratamento que a mídia dá a alguns avanços na psicologia, entendo a preocupação de seus pais.

Pergunte a dez amigos o que eles entendem por psicologia, e você receberá dez diferentes respostas. Seja como for, talvez perceba três temas principais: primeiro, que o conhecimento psicológico serve essencialmente para ajudar as pessoas a lidar com problemas mentais e emocionais; segundo, se são assíduos leitores de revistas e assistem televisão, que se trata das ligações entre o que se passa nas nossas mentes e cerébros; e terceiro, em referência a Darwin, que se trata do modo como as características psicológicas humanas evoluíram a partir de formas rudimentares em outra parte no reino animal.

A primeira perspectiva é muito comum em ambientes cristãos. Meio século atrás, na América do Norte, a Associação Cristã para Estudos Psicológicos foi fundada com o fim de prover um fórum de discussão sobre psicologia, aconselhamento e fé cristã. Desde então a maior parte de suas atividades e publicações se concentra em aconselhamento e psicologia clínica. A maioria esmagadora de seus membros está ligada a essas especializações, que ficam evidentes no periódico da Associação. Tudo isso por boas razões. Seu interesse maior é ajudar ao próximo, o que se realiza nos interesses práticos e cotidianos de conselheiros, psicoterapeutas e psicólogos clínicos.

Esse tema ligado à ajuda continua uma abordagem do século XIX em que quase todos os principais grupos cristãos pressupunham uma relação coerente entre “cuidado psicológico” e “cuidado da alma” (ou cuidado pastoral). Em determinado momento o significado de “psicologia” começou a mudar e seu limitado foco anterior se tornou quase irreconhecível para um típico curso de psicologia no século XXI.

Infelizmente, à medida que a psicologia se desenvolveu, sua relação prévia amigável com a religião passou a mudar. Primeiro desenvolveu-se no começo do século XX a psicanálise de Freud. Depois apareceu — e, por certo período, dominou — em meados do mesmo século o behaviorismo. Coincidentemente, as duas especializações desfrutaram de grande prestígio na mídia popuiar não-científica. Por exemplo, conceitos psicoanalíticos e termos como complexo de Édipo, repressão e sentimento de culpa pulularam na literatura, teatro e linguagem cotidiana. Termos behavioristas também se disseminaram bastante: as pessoas estavam condicionadas a fazer tal coisa ou inibidas de fazê-la.

O segundo e terceiro temas — a ligação da mente com o cérebro e a análise da emergência evolutiva da mente — têm forte suporte, se você olhar um típico manual universitário de psicologia deste século. Ali você encontrará diversas referências aos fundamentos biológicos da cognição e comportamento. Por exemplo, considere a nona edição de Psicologia, de David Myers, o manual didático americano de psicologia mais utilizado. Dos dezesseis capítulos, três lidam com personalidade, psicoterapia e psicologia social; um aborda metodologia; os doze restantes, que constituem 70 por cento do texto, lidam com tópicos psicológicos para os quais atenção às raízes neurais e evolutivas é importante. O restante contém outros tópicos profundamente biológicos, como emoção e estresse.[1] Então, embora a psicologia seja uma prática profissional nas clínicas, nas universidades é uma ciência.

Malcolm,

Muito obrigado pelas informações contextuais sobre a percepção da psicologia. Até agora só fui a algumas aulas, mas não consegui perceber que as pessoas aqui adotem Freud ou Skinner. Parecem estar mais inclinados ao segundo e ao terceiro tema que o senhor mencionou — a ligação da mente com o cérebro e a análise da evolução da mente humana.

Ben,

Isso não me surpreende. Suspeito que você achará que a maior parte de seus professores seja de herdeiros confessos do que ficou conhecido como a “revolução cognitiva”, que ocorreu como reação à perspectiva behaviorista dominante na psicologia em meados do século passado. Howard Gardner, professor de psicologia em Harvard, escreveu um livro intrigante sobre a chamada revolução cognitiva. Ele registrou algumas das lembranças do professor George Miller, psicólogo no MIT por volta do mesmo período em que o principal behaviorista, Skinner, estava em Harvard. Gardner lembra como George Miller foi a um pequeno congresso internacional em Cambridge, no Reino Unido, em 1956. Miller escreveu o seguinte: “Deixei o simpósio com a forte convicção, mais intuitiva do que racional, de que a psicologia humana experimental, a linguística teórica e a simulação dos processos cognitivos por computador são todas peças de um todo maior, e de que o futuro veria elaboração e coordenação progressivas de suas preocupações comuns”.[2]

Um editorial no periódico Science em 1997, ao refletir sobre cinquenta anos de psicologia, disse: “A promessa que Miller visualizou naquele período inicial se realizou”. Disse ainda: “O progresso notável que se fez em anos recentes começa a repercutir fora da comunidade científica, por causa de sua relevância na nossa vida cotidiana, ao esclarecer funções cognitivas normais (como linguagem, memória e planejamento) e doenças relacionadas ao cérebro (como esquizofrenia e Alzheimer)”.[3] Eu estava naquele encontro em Cambridge em 1956 e participei como secretário. Meu papel era ajudar meu orientador, sir Frederic Bartlett, a organizar o evento. Concordo plenamente com o relato de George Miller sobre o que aconteceu naquela ocasião. Muitos enxergam aquela conferência em Cambridge como o começo da revolução cognitiva.

Agora mesmo enquanto escrevo, vi que George Miller acabou de morrer com a idade de noventa e dois anos. No dia primeiro de agosto de 2012, o jornal New York Times observou que em 1955 a pesquisa psicológica ficou polvorosa quando um artigo de George Miller “deu início a uma explosão de novos pensamentos sobre o pensar e abriu um novo campo de pesquisa conhecido como psicologia cognitiva”.[4]

Malcolm,

Com todo respeito, 1956 e 1997 me parecem ter sido muito tempo atrás. Como estão as coisas hoje em dia?

Ben,

A revolução cognitiva continua e agora se fundiu, parcialmente, com avanços na neurociência. Por exemplo, hoje mesmo li um relatório que destacava como a compreensão dos processos cerebrais, combinada com avanços em psicologia cognitiva, continua a revolucionar nosso entendimento das doenças mentais. Esse relatório vem de um laboratório em Cambridge e é intitulado “New Blood-Test to Aid in Schizophrenia Diagnosis” [Novo teste de sangue deve auxiliar no diagnóstico de esquizofrenia]. “A pesquisadora-chefe, professora Sabine Bahn, comenta: “A esquizofrenia é uma doença complicada e desafiadora; as abordagens diagnósticas atuais, no entanto, continuam a se basear em entrevistas a pacientes e na análise subjetiva de sintomas clínicos. Temos expectativas que [nossa nova técnica] seja usada como auxílio ao processo atual e esperamos que também dará ao psiquiatra segurança adicional em sua avaliação, além de acelerar o processo”.[5]

Recebi outro relatório da Academia de Ciências Médicas na Grã-Bretanha que chama atenção para o rápido avanço na pesquisa sobre demência. Ele indica que até 2040 cerca de 80 milhões de pessoas viverão com demência — dado estatístico muito preocupante e bom motivo para que tanto esforço hoje se concentre em estudar essa doença, na tentativa de entender o que se passa no cérebro quando ela ocorre.[6]

Outro relatório recente desfaz um mito comumente aceito até hoje. Antes se acreditava que a prevalência de demência em países em desenvolvimento era baixa. Agora, porém, um trabalho de cooperação internacional no Instituto de Psiquiatria em Londres mostrou que estimativas anteriores subestimaram substancialmente sua prevalência em países de renda baixa ou média e que é quase tão comum quanto em países desenvolvidos. Meu objetivo ao compartilhar esses exemplos é simples: o que se aceita comumente em determinado período pode ser rapidamente superado pelo surgimento de novos indícios.

Malcolm,

Parece que o senhor está muito seguro da abordagem científica à psicologia. Pessoalmente, não tenho tanta certeza assim. Mesmo antes de começar a faculdade, li o suficiente para saber que as visões de Sigmund Freud, tão dominantes no começo do século XX, não são levadas muito a sério pelos psicólogos de hoje. Nosso livro didático reflete isso — dentre mais de setecentas páginas, as visões de Freud aparecem só num punhado delas. Embora acredite que a ciência nos tenha ensinado muito, me preocupo quando a colocamos em posição tão elevada. Mesmo assim, estou fazendo neurociência bem como psicologia, porque pela minha leitura geral vi como a pesquisa em neurociência é diretamente relevante para ser aplicada em psicologia, como psicologia clínica, e nisso tenho muito interesse.

Ben,

Entendo sua observação. Em termos proporcionais, acho que a ciência, incluindo a abordagem científica à psicologia, tem muito a oferecer ao mundo de hoje. Porém, grande êxito no trabalho científico vem acompanhado da tentação de desenvolver uma compressão equivocada da tarefa científica. Como o exemplo das visões em constante mudança sobre a demência mostra, às vezes temos de perceber que as afirmações oriundas da ciência são provisórias. Quem fez esta observação recentemente foi o presidente da Sociedade Real de Londres, lorde Martin Rees, em artigo intitulado “Keeping It Real” [Mantendo a real]. Rees disse: “Ciência não é dogma: suas afirmações são ora mais provisórias, ora mais convincentes. A situação mais difícil de retratar é quando existe forte consenso, mas alguma discordância. Controvérsia, confrontações e ceticismo sobre a ortodoxia têm forte apelo público”.[7] Debates atuais sobre os indícios da mudança climática são bom exemplo disso.

Ciência não é algo isolado do resto do mundo. Como também disse Martin Rees, “as aplicações e prioridades da ciência não devem ser decididas apenas por cientistas. Existem dimensões políticas, econômicas e éticas”. Ele defende que a ciência importa a todos. “Pode-se apreciar a essência da ciência sem ser cientista, da mesma forma que se pode apreciar música sem conseguir ler partitura ou tocar um instrumento”.

Suspeito que, com toda a atenção midiática aos avanços na psicologia, você em sua geração exercerá um papel importante dando o seu melhor para apresentar uma perspectiva equilibrada, realista e baseada em evidências sobre o que a pesquisa psicológica realmente está e não está produzindo.

O tema de lorde Rees foi também adotado por um de seus predecessores recentes na presidência da Sociedade Real, sir Michael Atiyah, um dos maiores matemáticos vivos do mundo. Ele comentou que “existe muito interesse público na ciência e uma compreensão real sobre seus benefícios, mas existe também medo. Essa reação crescente contra a ciência — particularmente seu impacto sobre o meio ambiente — surgiu à medida que as aplicações da ciência passaram a ter impacto maior em nossas vidas. Se você fizesse toda sua ciência no laboratório, só alguns poucos se importariam, mas, como não o fazemos, mais pessoas estão questionando seu impacto”. [8]

No que diz respeito a questões sobre até que ponto a psicologia é ou deveria almejar ser “científica”, você encontrará uma gama de pontos de vista entre cristãos que compartilham da mesma perspectiva de fé. Você não é o único a temer que a suposta abordagem científica à psicologia possa levar, por vezes, à incapacidade de reconhecer a possível contribuição que psicólogos podem dar em campos que não se diriam científicos. Psicoterapeutas têm de lidar com problemas urgentes e imediatos e, por isso, é compreensível protestarem que não podem se dar ao luxo de esperar até que a última investigação empírica devidamente elaborada sobre determinado tipo de terapia tenha sido completada e publicada.

Psicólogos não são os únicos que entendem a natureza humana. As peças de Shakespeare estão repletas de percepções psicológicas profundas sobre a natureza humana. Sally Shuttleworth da Universidade de Oxford nos lembra que a psicologia do desenvolvimento não começou com Jean Piaget, mas na literatura. Ela comenta como livros de Dickens e da família Brontë representaram a mente da criança de dentro para fora e tiveram enorme influência na psicologia e psiquiatria infantis. Shuttleworth acredita que o início concreto da psicologia infantil remonte ao livro de Charles Darwin A Biographical Sketch of an Infant [Esboço biográfico de uma criança], de 1877. [9] Mesmo alguns livros da Bíblia, como Provérbios e Salmos, estão repletos de percepções profundas sobre a natureza humana.

Acabei de receber um livro que descreve cinco diferentes abordagens que os cristãos adotaram para relacionar o que se passa na psicologia com aquilo em que os cristãos tradicionalmente creem.[10] Alguns dos autores dão apoio à sua preocupação de que uma abordagem exageradamente científica deixa passar questões importantes que a psicologia pode nos ensinar. Outros têm a forte sensação de que a psicologia, particularmente a psicologia moderna, está errada por não fazer mais referência à religião. Todo o campo da chamada “psicologia transformacional”, por exemplo, enxergaria a abordagem científica como muito limitada, um ponto de vista adotado também por alguns dos psicólogos que se ocupam essencialmente de psicologia clínica e aconselhamento.


Referências:   

[1] David G. Myers, Psychology, 9. ed. (Nova Iorque: Worth Publishers, 2010) [publicado em português com o título Psicologia, 9. ed. (Rio de Janeiro: LTC, 2012)].
[2] Howard Gardner, The Mind’s New Science: A History of the Cognitive Revolution (Nova Iorque: Basic Books, 1985), p. 29 [publicado em português com o título A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva (São Paulo: Edusp, 20033)].
[3] Marilyn S. Albert, “The Science of the Mind”, Science 275 (março de 1997): 1547.
[4] Paul Vitello, “George A. Miller, a Pioneer in Cognitive Psychology, is Dead at 92”, New York Times, 01 de agosto de 2012, <http://www.nytimes.com/2012/08/02/us/george-a-miller-cognitive-psychology-pioneer-dies-at-92.html>.
[5] Sabine Bahn, “New Blood-Test to Aid in Schizophrenia Diagnosis”, informativo de pesquisa da Universidade de Cambridge, 28 de junho de 2010, <http://www.cam.ac.uk/research/news/new-blood-test-to-aid-in-schizophrenia-diagnosis>.
[6] “Challenges and Priorities for Global Mental Health Research in Low- and Middle-Incomes Countries”, relatório de simpósio, Academia de Ciências Médicas, dezembro de 2008.
[7] Martin Rees, “Keeping It Real: The Art of Science”, em Eureka, suplemento a The Times (outubro de 2009): 9.
[8] Michael Atiya, entrevistado por Ronald Kerr.
[9] Charles Darwin, A Biographical Sketch of an Infant, 1877.
[10] Eric L. Johnson (ed.), Psychology & Christianity: Five Views, 2. ed. (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 2010).

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