Sobre o Autor
O Prof. Roger Trigg é Professor de Filosofia da Warwick University, Presidente Fundador da Associação Filosófica Britânica e Presidente Fundador da Sociedade Britânica para a Filosofia da Religião, da qual é atualmente Vice-Presidente. Prof. Trigg tem publicado amplamente sobre o relacionamento entre ciência, religião e filosofia, incluindo Rationality and Science: Can Science Explain Everything? (Blackwell, 1993), e Rationality and Religion: Does Faith Need Reason? 1 (Blackwell, 1998).
Resumo
Deve a ciência constituir um sistema fechado, assumindo que toda a realidade está ao seu alcance? Longe de ser autônoma, e de definir por seu método a natureza da racionalidade, a própria ciência se apoia em pressuposições fundamentais. Sem dúvida, podemos tomar por certa a regularidade e a natureza ordenada do mundo físico, bem como a habilidade da mente humana de percebê-las. Mas o teísmo pode explicar esses fatos invocando a racionalidade do Criador.
O Poder da Razão
A ideia de que a ciência seja qualquer coisa menos autossuficiente ou o exemplo supremo da razão humana pode parecer extraordinária para muitos no princípio do século vinte e um. “Certamente” – dirão eles – “a ciência é, sim, a própria fonte do conhecimento, e o critério de tudo o que for racionalmente aceitável.” A possibilidade de que ela necessite de justificação posterior, muito menos de um tipo religioso, será desconsiderada imediatamente por estes. Por essa razão, a ciência muitas vezes passa a impressão de ser segura e autoconfiante, e a fé religiosa, a impressão de sempre recuar frente ao avanço do conhecimento científico. Algumas vezes os crentes religiosos colocam a sua fé na inabilidade atual da ciência de explicar alguma coisa. Tal é, no entanto, uma estratégia arriscada. O mero fato de que nós não sabemos o que causa alguma coisa não significa que devamos tomar Deus como a causa evidente. O problema pode ser resultante de uma ignorância temporária de nossa parte. Com um maior progresso científico, a lacuna em nosso conhecimento pode ser preenchida, e mais uma razão para a fé ser removida. O assim-chamado “Deus das lacunas” é um Deus que não fornece segurança, e que rapidamente pode ser tornado desnecessário.
O recuo contínuo da fé foi representado de forma memorável no famoso poema “Dover Beach”, de Matthew Arnold, na metade do século dezenove (que hoje consideramos ter sido uma época religiosa). Observando a descida da maré, ele se referiu ao “mar da fé” e “seu melancólico e longo bramido de ressaca”. A frase é muito citada e ainda tem certa ressonância. É fácil pensar que a ciência seria uma das causas principais da queda da crença religiosa, fato tão sem remorsos e predizível como o recuo do mar depois da maré alta. De fato, a noção sociológica de secularização traz consigo muito dessas implicações. A visão é de que haveria uma progressão normativa para além da fé em direção a formas de olhar o mundo que dispensam qualquer necessidade da religião. Haveria, aparentemente, uma inevitabilidade quanto a este processo que significaria que toda religião está destinada a recuar até o ponto da extinção. É desnecessário dizer que, embora isso pareça ser acurado quanto ao estado atual da Europa Ocidental, não reflete a realidade social em outras partes do mundo, mesmo em lugares, como os Estados Unidos, onde a ciência moderna é influente.
Poderia a ciência admitir a ação divina, ou a realização de qualquer intenção divina? Frequentemente se pensa que ela pode ser compreendida em seus próprios termos, sem a necessidade de fazermo-la dependente de qualquer coisa além de si mesma. A ciência é assim vista como a mais pura expressão da razão humana, sendo a sua função pôr em fuga as forças da superstição e da fé cega. Este é o legado do Iluminismo do século dezoito, que tendia a ver o mundo como um mecanismo material autocontido, e a razão humana como a chave para compreender o seu funcionamento. Qualquer referência a Deus era, na melhor das hipóteses, redundante, e na pior delas, uma descida à irracionalidade. O Iluminismo tendia a tomar por certo o poder da racionalidade humana. Mas nem a possibilidade da razão e da verdade, nem a ordem e a regularidade no mundo investigado pela ciência deveriam ser assumidas assim tão facilmente. A racionalidade tem sido vista demasiadas vezes como um fato supremo, e às vezes foi quase deificada, como quando após a Revolução Francesa igrejas foram convertidas em Templos da Razão. De fato, o racionalismo e o materialismo parecem andar de mãos dadas, de modo que o termo “racionalismo” frequentemente se aproxima de um sinônimo para “ateísmo”.
Embora já se tenha visto o mundo em termos mecanicistas, os seres humanos aparentemente foram capazes de se postar fora do mecanismo para compreendê-lo. Afinal, se a razão fosse ela mesma o produto de um mecanismo causal, como uma peça sofisticada de engenho, não haveria garantias de que o que somos levados a crer seja necessariamente verdadeiro. Nós simplesmente creríamos no que fomos induzidos a crer, havendo ou não boas razões para tanto. Para tomar o exemplo da evolução: nós poderíamos, de acordo com a teoria da seleção natural, ter evoluído de modo a sustentar certas crenças naturalmente. Algumas crenças poderiam ser benéficas, ajudando-nos a sobreviver e a ter mais descendentes. Alguns argumentam que as próprias crenças religiosas poderiam pertencer a esta categoria. No entanto, o propósito deste argumento, no mais das vezes, é explicar racionalmente porque alguns tipos de crenças são comuns, a despeito de serem falsas; e tal explicação exige a confiança no poder independente da razão humana.
A crença em uma racionalidade universal era típica do que veio a ser chamado de modernidade, mas em anos recentes, o assim-chamado “pós-modernismo” desafiou esta crença. Como podemos ter certeza de que todos compartilham da mesma habilidade de raciocinar, e que podem juntos alcançar uma verdade que valha para todos? O pós-modernismo nega tal noção e enfatiza ao invés disso as diferenças entre épocas e tradições. O que é considerado obviamente verdadeiro em certo tempo e lugar pode ser muito diferente das asserções aceitas em outro tempo. Não haveria então uma racionalidade todo-abrangente, ou um núcleo comum de raciocínio que todos os humanos possam compartilhar, nem verdade objetiva sustentando-se de geração em geração. Tais asserções (que em si mesmas soam como reivindicações de verdade objetiva) poderiam solapar a fundamentação inteira que subjaz à ciência. Esta não poderia mais ser vista como aplicação sistemática da razão humana, mas meramente como o resultado dos preconceitos de uma tradição particular. Assim nós poderíamos falar em ciência “Ocidental”, ou ciência “moderna”, cujas descobertas não seriam descobertas de modo algum, mas o mero desdobramento de certas pressuposições historicamente condicionadas.
Alguns vêm dando boas-vindas ao modo como o pós-modernismo esvazia as pretensões da ciência, porque assim, pensam eles, cria-se espaço para o funcionamento da religião. Se a ciência não puder reivindicar a verdade, também não poderá excluir a religião com base na falsidade desta. Mas o custo de tal operação é alto. Não apenas a ciência surge impotente, como também nenhuma crença religiosa pode mais reivindicar veracidade. Não havendo razão para fazer ciência, também não haverá razão para ser religiosamente comprometido. A “razão” é assim destruída. E nada se segue disso senão que ciência e religião constituiriam corpos diferentes de crença, postos em compartimentos autocontidos. Nenhuma poderia atacar ou apoiar, ou dizer qualquer coisa de relevante à outra. Cada uma teria de deixar a outra sozinha.
Esse impasse entre corpos de crença, que poderiam até estar em conflito mútuo, pode ser bem-vindo em alguns lugares. Muitos cientistas desejam aceitar só metade da estória, a saber, que a religião e a ciência não têm nada a ver uma com a outra. Eles são bem mais relutantes em seguir com a ideia pós-moderna de que a ciência não é um produto da razão, e não pode reivindicar verdade. É uma premissa compartilhada em ciência de que suas reivindicações, se verdadeiras, o são em todos os tempos e lugares. Elas são igualmente válidas em Washington e em Pequim. E concernem a leis físicas que se aplicam tanto aqui e agora, como também aos limites do universo e ao princípio do tempo.
Separando ciência e religião
O biólogo evolucionário Stephen Jay Gould adotou a ideia por ele denominada “magistérios não-superpostos”.2 Com isso ele quis dizer que religião e ciência teriam cada uma a sua área de interesse, mas seriam diferentes e não teriam nada que dizer uma à outra. Em outras palavras, a linguagem religiosa não estaria no “negócio” de descrever fatos do modo como a ciência o faz. A ciência diz o que acontece, ao passo que à religião fica a tarefa de responder “porque”. Ciência e religião não estariam na mesma esfera de discurso. Elas não poderiam argumentar entre si porque tem funções diferentes.
Este quadro de uma separação absoluta entre ciência e religião tem seus atrativos para aqueles que gostariam de impedir a religião de dizer qualquer coisa à ciência, respeitando ao mesmo tempo a sua liberdade para operar em sua própria esfera. Desse modo, a ciência é libertada de reivindicações autoritárias, derivadas de alguma hierarquia eclesiástica ou de interpretações da Bíblia. A razão científica é mantida livre de quaisquer considerações teológicas, poupando-se da necessidade de lidar com as confusões advindas do confronto com a crença religiosa. Ciência e religião podem seguir seus próprios caminhos. Isto se encaixa com as tentativas atuais, não apenas de manter igreja e estado separados, mas também de fazer da religião um assunto pessoal e privado, em distinção ao papel público da ciência.
Mas manter ciência e religião separadas de forma que elas não lutem entre si é apenas metade da história. Na perspectiva pós-modernista nenhuma delas pode reivindicar superioridade; no entanto, muitos cientistas não veem a coisa assim. Eles pensam que a ciência pode ainda reivindicar veracidade em um sentido objetivo, mostrando o que é verdadeiro para todos em todos os tempos. Ela ainda seria a expressão da racionalidade humana. O resultado dessa perspectiva é que a religião, mesmo se insulada de acusações de falsidade evidente, passa a ser compreendida como operando em uma área na qual o tipo de verdade literal reivindicado pela ciência não é válido. Neste caso, diríamos que ela fala de “valores”, em distinção aos “fatos”. Sua preocupação seria com o sentido e o propósito que damos às nossas vidas, e ela não poderia ser vista como se pondo em rivalidade com a ciência. Verdade seria o que a ciência nos diz. A religião lidaria com questões pessoais. Em outras palavras, a ciência seria objetiva, e a religião, subjetiva. A ciência seria o produto da razão, e a religião o fruto de alguma faculdade misteriosa chamada “fé”. A ciência nos falaria sobre o mundo. A religião permitiria a cada um de nós efetivar por nós mesmos o que consideramos importante. A ciência poderia manter o seu lugar no mundo público. A religião seria um assunto privado.
‘Uma recusa em postular entidades não-naturais pode ser uma forma de fazer progresso em ciência, mas isto não significa que tais entidades não possam existir’
Se a ciência é o árbitro da verdade, e não pode lidar com eventos não físicos, cai excluída por definição qualquer possibilidade de intervenção divina, ou sobrenatural, no mundo físico (de um modo que, incidentalmente, exclui reivindicações básicas da doutrina Cristã sobre a Encarnação e a Ressurreição). Assim, a recusa da ciência de cooperar com a religião leva inevitavelmente à visão de que a religião não adiciona nada à nossa compreensão do funcionamento do mundo investigado pela ciência. O que é aceito como conhecimento tem de ser submetido a padrões públicos de teste, por meio de observação, medição e experimento. A ciência é feita o árbitro do conhecimento aceitável, e seus métodos definem a verdade. Qualquer coisa fora do alcance da ciência é considerada indemonstrável.
Isto está apenas a um pulo da visão positivista de que o que não pode ser cientificamente testado e verificado é sem sentido. Como A.J. Ayer disse em seu clássico Linguagem, Verdade e Lógica3 , “todas as proposições que tem conteúdo factual são hipóteses empíricas”. Ele expandiu a declaração dizendo que “cada hipótese empírica deve ser relevante para alguma experiência atual ou possível”. Declarações metafísicas, para além da experiência, seriam estritamente sem sentido e sem conteúdo. Tal “positivismo lógico” há tempos foi abandonado, parcialmente porque não pôde nem mesmo lidar com as entidades teóricas da física. Não obstante, a sua influência permanece, especialmente quando uma distinção simplória é traçada entre fatos científicos e um nebuloso mundo subjetivo de reações pessoais aos fatos. A ciência lida com o que é “factual”, e a religião cai excluída do mundo dos fatos. As duas não podem se afetar mutuamente, diz-se, mas a premissa oculta é a de que reivindicações científicas são baseadas racionalmente, ao passo que a religião é a esfera do irracional.
A ciência é por definição uma disciplina empírica, e o seu método é o método empírico por excelência. Ela jamais teria feito progressos se tivesse assumido muito facilmente que, caso uma explicação empírica não estivesse imediatamente à mão, dever-se-ia apelar para a magia ou para o sobrenatural. Qualquer um pode atribuir eventos estranhos a fadas ou duendes nos fundos do jardim, mas a ciência moderna focaliza rigorosamente o mundo físico, e espera encontrar explicações físicas. Por certo, isso pode significar que seria possível ver o mundo como um sistema físico fechado e autocontido. Mas desde o advento da mecânica quântica se admite que isso seria uma simplificação, e que há lacunas ontológicas no nível microscópico. Não se pode assumir assim tão facilmente que eventos não causados devem sempre ser aleatórios e inexplicáveis em termos de qualquer agência externa.
O método científico tem produzido resultados. Nosso conhecimento do mundo físico e de seus processos vem se acumulando. Parece óbvio que qualquer apelo a uma agência sobrenatural seria “não-científico”. Mas o que devemos concluir disso? Para muitos, significaria que o discurso sobre Deus é irracional, desde que a razão reside inteiramente na província da ciência. Mas da mesma forma, tal poderia meramente demonstrar as limitações intrínsecas da ciência para confrontar aspectos da realidade que transcendem o mundo físico ordinário.
Uma recusa em postular entidades não-naturais pode ser uma forma de fazer progresso em ciência, mas isso não significa que tais entidades não possam existir, ou que, por exemplo, intervenções divinas não possam acontecer. Nenhum cientista deveria render-se a apelos a duendes, mas isso não nos impele à conclusão de que o mundo físico só pode ser explicado em seus próprios termos, sem a possibilidade lógica de uma agência externa. Uma vez que pensemos que a ciência pode explicar tudo, qualquer coisa além do seu compasso parecerá tão irreal quanto um duende. A ciência não pode lidar com eventos e entidades não-físicas. De fato, é um paradoxo que a ciência seja um produto da mente humana, mas possa lidar com a ideia de uma mente apenas por meio da redução dela às suas origens físicas. Isso apenas mostra os possíveis limites da ciência como meio de aquisição de conhecimento, de modo algum fechando a questão sobre o que pode ser real. É crucial pôr à parte as questões epistemológicas, sobre como obtemos conhecimento, daquelas da metafísica, sobre o que há para ser conhecido. Nós não deveríamos jamais assumir, sem argumentação posterior, que o que não pode ser explicado pela ciência não pode existir, meramente por esta razão.
A ciência precisa de Deus?
A ciência não pode escapar de premissas filosóficas sobre a estrutura na qual a sua própria atividade tem lugar. Por um lado, ela tem de assumir que há um mundo real com um caráter particular, e que ela mesma não é um sistema elaborado de ficção. Entretanto, a ideia de que a ciência deva ser isolada de outros ramos de conhecimento putativo apenas faz sentido se já se fez o julgamento de que a ciência é a única fonte de conhecimento, porque nenhuma realidade existiria além do seu alcance. Em inglês, a palavra latina para conhecimento, scientia, tem sido estreitada para significar apenas conhecimento empírico, e isto, talvez, reflita uma asserção amplamente compartilhada.
Muitos tomam por certo que a ciência funciona, e não se incomodam em pensar a respeito do que precisa ser assumido para que tal seja possível. Mas o que garante a nossa pressuposição de que a observação e o experimento, e toda a panóplia do conhecimento empírico, tem bases sólidas? O fato de que observações aqui e experimentos ali podem ser generalizados de modo a obtermos uma aplicação universal deveria nos deixar surpresos. A ciência, no entanto, pode apenas proceder sobre a suposição de que cada parte da natureza é representativa para outras partes, mesmo em outros lugares do universo. A assim-chamada “uniformidade da natureza” não pode ser descoberta pela ciência, desde que sempre apenas uma pequena parte do mundo físico será acessível. Mas nós assumimos que as leis físicas têm amplo alcance, e que podem nos ajudar a prever o que ainda não ocorreu. Por indução, nós sempre pensamos que podemos nos mover daquilo que já experimentamos para o que ainda não experimentamos, do conhecido para o desconhecido.
‘Para a ciência ser possível, o mundo deve ser ordenado de modo a se comportar de forma regular e inteligível’
A ciência, na era moderna, não surgiu em um vácuo. Por que a ênfase moderna na razão experimental substituiu a inclinação prévia pelo raciocínio mais especulativo? Ao invés de teorizar, talvez através da geometria, sobre como o mundo deveria ser, os cientistas compreenderam a necessidade de investigar como ele na verdade é; deu-se um crescente reconhecimento da contingência do mundo físico. Deus, segundo se pensou, não tinha que criar o mundo de uma forma particular. Robert Boyle, por exemplo, acreditava que as leis da natureza eram totalmente dependentes da vontade de Deus, o qual não foi constrangido por nada além de si mesmo. Seguia-se a necessidade de usar a razão para compreender como, na realidade, o mundo fora criado. Mas por que deveria a nossa racionalidade ser capaz de tal feito? Poderia ter parecido a eles que a base para acreditar na competência de nossa débil racionalidade era insuficiente. De modo algum era certo que o mundo se comportava segundo um ordenamento cognoscível, mesmo em princípio.
Para a ciência ser possível, o mundo deve ser ordenado de modo a se comportar de forma regular e inteligível, e também deve ser compreensível, em particular, à mente humana. Nenhuma dessas condições pode ser tomada por certa. No século dezessete, época de Newton e Boyle, pensava-se que os padrões subjacentes e a ordem presente no mundo físico haviam sido criados por uma mente racional e divina. De fato, Deus era visto como a fonte e o fundamento de toda razão. Porque o mundo fora criado por uma mente divina, haveria uma ordem subjacente, de modo que, pela vontade de Deus, o mundo se comporta normalmente de forma previsível e regular. De fato, o uso do termo “logos”, no princípio do Evangelho de João, identificando logos e Deus, refere-se a algo muito maior do que meramente palavras e discurso. “Logos”, na filosofia Grega, tem a ver com a racionalidade e a inteligibilidade inerente a todas as coisas. Assim, podemos falar de biologia, o logos sobre a vida, e mesmo de teologia, o logos sobre Deus. A razão inerente às coisas, refletindo a racionalidade do Criador, também torna possíveis a reflexão racional e a descoberta. Podemos raciocinar cientificamente porque há uma estrutura racional inerente ao mundo. Além disso, pensava-se, tal é possível aos humanos porque fomos feitos à imagem de Deus, compartilhando de algum modo limitado da Sua racionalidade.
Os primeiros brotos da ciência moderna surgiram da crença de que há uma racionalidade intrínseca ao universo físico, em virtude de sua criação pela própria fonte de toda razão. Se a Razão permeia todo o universo, e nós fomos contemplados com uma participação nessa razão, podemos esperar compreender, ao menos de um modo limitado, como o universo funciona. O pano de fundo teísta deu resposta a duas importantes questões. Por que podemos assumir a regularidade dos processos físicos, sejam ou não eles totalmente determinados, e por que as nossas mentes são ajustadas para compreendê-los? O slogan da escola de filósofos e teólogos conhecida como Platonistas de Cambridge4 , que foram influentes no tempo da fundação da Royal Society depois da Restauração da monarquia, era “a razão é a lâmpada do Senhor”. Eles não levantaram nenhuma objeção à inquirição racional, sob alegações de que humanos estariam tentando ir além de si mesmos e considerando-se mestres da Criação. Nossa razão seria como um candeeiro, pálida e tremeluzente, se comparada à luz da sabedoria de Deus. A despeito disso, seria suficiente para nos capacitar a obter algum conhecimento. Todo o espaço era dado por eles para reconhecer a fabilidade e a parcialidade do conhecimento humano; mas sendo nós, como se pensava, feitos à imagem de Deus, poderíamos obter lampejos de compreensão por meio da ciência e de outras operações da mente humana. Na verdade, de acordo com essa visão da razão como enraizada em Deus, a racionalidade humana não seria uma desamparada. Num sentido geral, ela seria tão revelatória dos propósitos de Deus quando a mais específica revelação ensinada pelo Cristianismo. O Platonismo dos Platonistas de Cambridge5 era capaz de lidar bem com um contraste entre o conhecimento incerto e vacilante aqui e agora, e o conhecimento perfeito em outra esfera. Essa realidade mais alta estaria, no entanto, refletida em nosso mundo físico, de modo que este mundo, com sua estrutura e ordem, dependeria de uma forma superior de existência para fazer sentido.
‘Como matéria de fato histórico, a ciência moderna se desenvolveu a partir de uma compreensão do mundo como Criação ordenada por Deus, tendo a sua própria racionalidade inerente’
Diferentemente dos pensadores do século seguinte, aqueles que pavimentaram a estrada para a ciência moderna tanto respeitavam a razão, como criam que a sua importância se assenta em sua conexão com a mente do Criador. A racionalidade pode não ser capaz de responder a cada questão, mas podemos nos apoiar nela até onde ela for, porque é uma faculdade conferida por Deus. Isto certamente contradiz qualquer negação pós-moderna do poder da razão. E também vai contra a visão do Iluminismo tardio de que a razão deveria ser amarrada à experiência empírica de um modo que o sobrenatural fosse eliminado. Longe de um equacionamento de materialismo e racionalismo, a própria racionalidade requer um contexto sobrenatural, de acordo com os fundadores da ciência moderna. A sua crença em Deus deu-lhes a confiança de que o mundo físico, com toda a sua complexidade e vasta extensão, poderia ser compreendido. A ciência não sumariza a nossa experiência passada, meramente, mas pretende mostrar o que nós provavelmente vamos experimentar. Ela está no negócio da predição, tanto quanto no da descrição.
Como matéria de fato histórico, a ciência moderna se desenvolveu a partir de uma compreensão do mundo como Criação ordenada por Deus, tendo a sua própria racionalidade inerente. A questão agora é se é possível prosseguir com confiança quando todas as premissas teológicas foram descartadas.
- Por que o mundo se comporta tão regularmente, ao ponto da ciência ser capaz de fazer generalizações e reivindicações universais sobre a natureza da realidade física?
- Por que ele deveria ter tal racionalidade inerente e compreensível às nossas mentes?
- Por que até mesmo os símbolos altamente abstratos da matemática, uma criação da mente humana, deveriam ser capazes, como parece, de expressar o funcionamento do mundo?
Sem um apelo a Deus como a fonte e fundamento da razão, o qual fez o mundo de um modo racional, parece haver pouca probabilidade de prover-se qualquer legitimação externa para a ciência. Mas assim que expusermos esse fato para ser aceito em seus próprios termos ou recusado, muitos o rejeitarão completamente. E então a visão científica parecerá ser nada mais que o preconceito cultural de uma sociedade particular, num tempo particular.
Isso não apenas restringe a nossa ideia de racionalidade ao que for acessível à metodologia científica; também remove toda a confiança de que a nossa razão esteja equipada para destravar os mistérios do mundo físico. Manter a ciência e a religião em compartimentos separados é negar que elas estejam lidando com o mesmo mundo, e provavelmente implica que a religião não descreve a realidade de modo algum. Ela não teria, assume-se, os poderes para reivindicações de veracidade que a ciência tem.
A não ser que tomemos a ciência considerando a sua própria (e, algumas vezes, demasiado confiante) autoavaliação, e nos recusemos a aliviar quaisquer preocupações sobre a sua base racional, deveríamos considerar com seriedade o fato de que a crença em Deus, como Criador, proveu no passado uma base firme para a compreensão científica. O desejo de compreender as obras do Criador tem sido uma motivação excepcional para a ciência. Ela dependeu do teísmo no século dezessete, no tempo de Newton e Boyle. O século dezoito viu uma crença crescente de que a ciência poderia sobreviver por conta própria. Mas os ataques contemporâneos à ideia de racionalidade “moderna” sugerem que sem uma base legítima a ciência não continuará florescendo. 6
Tradução: Guilherme V.R. de Carvalho, Setembro de 2007
- Em português: Racionalidade e Religião, Instituto Piaget, 2001.
- Gould, J.S. Rocks of Ages, New York: Ballantine (1999), p. 88. Em português: Os Pilares do Tempo, Rocco (2002).
- Ayer, A.J. Language, Truth and Logic, London, Gollancz, (2nd ed. 1946), p.41. Em português: Linguagem, Verdade e Lógica, Presença (1991).
- Ver Taliaferro, C. & Teply, A.J. (Eds.) Cambridge Platonist Spirituality, (Classics of Western Spirituality), New York: Paulist Press (2004).
- Taliaferro & Teply, op. cit., (3) ibid
- Para discussão posterior sobre o impacto do materialismo, ver Trigg, R. Philosophy Matters, Oxford: Blackwell Publishing (2002), e para uma discussão do lugar da religião na vida pública, particularmente em face da influência da ciência, ver Trigg, R. Religion in Public Life: Must Faith be Privatized? Oxford: Oxford University Press (2007).
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