Agostinho de Hipona

Por Gavin Ortlund

Desde que eu tenho memória, sempre fui fascinado com a criação de Deus. Aqui na Califórnia, alguns dos meus momentos mais felizes foram as trilhas que eu fazia entre as sequoias, ou brincando com os meus filhos nas praias do belo Oceano Pacífico. Quando nós moramos em St. Louis, íamos regularmente ao zoológico e eu, com frequência, me sentia compelido a adorar por causa dos animais. Somente alguém muito sábio e cheio de bondade poderia ter feito os pavões, os porcos-da-terra, as tartarugas e os escorpiões.

Eu também achava a criação fascinante do ponto de vista teológico. Ao mesmo tempo, estudar e escrever sobre a criação, especialmente como pastor, às vezes me fazia sentir como se estivesse andando em um campo minado. É algo muito controverso. Aliás, eu frequentemente pensava na criação talvez como a doutrina mais controversa e ao mesmo tempo negligenciada em toda a teologia – uma área que nós tendemos a evitar, a não ser que tenha relação com os pontos sendo contestados.

Para muitos, a doutrina da criação não passa de uma posição sobre a idade do mundo e quais os meios Deus escolheu para criar. Infelizmente, tal enfoque pode ser divisivo e polarizador. Mais do que isso, com frequência ele minimiza a nossa reflexão sobre o sentido mais profundo do ser criado. Eu me pergunto se isso é, em parte, o que nos leva a negligenciar outros assuntos na igreja – como as artes, a vocação, a cultura e a existência corpórea. Com muita frequência, nós pensamos no fato de sermos pecadores, ou sermos cristãos, mas esquecemos de pensar sobre sermos humanos.

Nas minhas considerações sobre a criação, descobri que é surpreendentemente produtivo abordar essa doutrina de uma perspectiva histórica. Às vezes, considerar as vozes do passado pode fornecer uma perspectiva proveitosa sobre as controvérsias dos nossos dias atuais, levando-nos de uma polarização para um diálogo e uma aproximação construtivos. Particularmente, estou convencido de que Santo Agostinho, o grande pai da Igreja e bispo de Hipona (354-430), tem muito a dizer à Igreja contemporânea sobre a criação, tanto dando suporte às áreas negligenciadas, quanto acalmando e direcionando as áreas de conflito.

Eis os sete fatos sobre Agostinho que mostram por que a sua obra pode enriquecer o nosso entendimento sobre a criação:

1. A percepção que Agostinho tinha de que Gênesis 1 estava desalinhado com as tendências intelectuais mais sofisticadas de seu tempo foi um fator crítico para sua conversão ao maniqueísmo. Mas a sua percepção das interpretações alternativas, menos “literais” de Gênesis 1 foi um fator crítico para o seu retorno à ortodoxia. Se ele não tivesse ouvido a pregação alegórica de Ambrósio sobre Gênesis 1, talvez ele nunca tivesse encontrado o seu caminho de volta à igreja. Isso parece estar relacionado com alguns padrões comuns de hoje (com exceção do maniqueísmo, claro).

2. Agostinho continuou a pelejar com os primeiros capítulos de Gênesis durante toda a sua carreira teológica, vindo a escrever cinco comentários distintos sobre eles e considerando-os amplamente em suas outras obras e sermões. A criação se tornou figura central de todo o seu pensamento. Como eu disse em meu livro, sob o risco de exagerar na afirmativa, “a criação foi para Agostinho, o que a justificação foi para Lutero, ou a transcendência divina foi para Barth.”  Em tudo isso, Agostinho tratou a criação em seu nível existencial mais profundo. Para ele, a criação era a chave para entender os anseios mais profundos do coração humano.

3. Agostinho aplicou a criação no diálogo com as crenças não-cristãs de seu dia, de modo que em sua doutrina da criação, você tem uma amostra de como o Cristianismo, como um todo, fazia sentido para ele. Ao se debruçar sobre a doutrina da criação de Agostinho, você o vê fazendo a sua própria “apologética”.

4. A opinião de Agostinho sobre a criação foi reconhecida como autoridade em seus dias e seus comentários em Gênesis não possuem equivalente próximo entre os pais da Igreja. Sua opinião sobre a criação continuou a exercer enorme influência sobre a Igreja nas eras subsequentes, particularmente em relação ao surgimento da ciência moderna. Galileu Galilei, por exemplo, citou o comentário de Agostinho em Gênesis mais de 10 vezes na defesa de suas teorias.

5. Agostinho adotou um tipo de estrutura interpretativa de Gênesis 1, rejeitando vigorosamente a ideia de que os dias ali descritos são períodos de 24 horas. Essa opinião e os três motivos principais que Agostinho aproveitou ao máximo para defendê-la, foi enormemente influente sobre a igreja medieval.

6. Agostinho afirmou veementemente que a morte animal antes da queda era algo bom, contrariando a crítica maniqueísta de que a morte animal é um mal. Ele era, particularmente, fascinado por insetos e animais carnívoros e passou bastante tempo refletindo por que Deus os fez parte de sua boa criação.

7. Agostinho considerou se Adão e Eva eram figuras simbólicas e desenvolveu uma abordagem matizada e literalmente sensível a essa questão. Em sua conclusão, ele defendeu sua historicidade, mas reconheceu um alto nível de estilização e simbolismo em Gênesis 2-3. Há paralelos marcantes entre a sua abordagem e várias posições nas discussões atuais sobre evolução, Adão e Eva e a queda.

Há muito mais a ser dito, mas espero que isso te dê uma noção da incrível relevância de Agostinho.

O fato é: o maior teólogo da Igreja primitiva, e talvez o teólogo mais influente de toda a história, antecipou praticamente todas as nossas ansiedades atuais em relação à doutrina da criação. E ninguém pode, em sã consciência, reduzir Agostinho a irrelevante ou liberal. Nem qualquer de suas opiniões pode ser considerada como uma rendição às descobertas científicas, visto que ele viveu um milênio e meio antes da revolução científica.

Com muita frequência, nós pensamos no fato de sermos pecadores, ou sermos cristãos, mas esquecemos de pensar sobre sermos humanos. – Gavin Ortlund

Sugiro que a voz de Agostinho precisa ser mais ouvida nas discussões atuais. Espero que meu livro seja proveitoso para esse fim para professores, pastores, seminaristas, cristãos leigos interessados e outros que querem nos ver progredir nessa doutrina contestada, mas vitalmente importante. Como eu escrevi no início do livro,

“Imagine um jovem no final de sua adolescência. Ele se mudou recentemente para a cidade para estudar. Durante seus estudos, ele se convence de que o relato da criação segundo Gênesis é inconsistente com as tendências intelectuais mais sofisticadas de seus dias. Ele rejeita a fé cristã em que foi criado, entregando a sua terceira década aos pecados da juventude a ambições mundanas.

Eventualmente, ele conhece cristãos que sustentam uma interpretação diferente dos primeiros capítulos de Gênesis e sua crítica intelectual ao Cristianismo é minada. Ele entra em um período de indecisão e angústia profunda. Sua mãe permanece orando por ele. Finalmente, depois de muito conflito pessoal interno, ele tem uma experiência dramática de conversão.

Esse é o testemunho de St. Agostinho (354-430), que é possivelmente o maior dos pais da Igreja e o teólogo cristão mais influente da história da Igreja. Mas, em linhas gerais, é uma história que parece se repetir vez após outra nos dias de hoje. Os detalhes são diferentes, obviamente. Por exemplo, a nossa ameaça hoje em dia vem do naturalismo, ao passo que a de Agostinho veio do maniqueísmo. Mas o cenário geral nos é muito familiar – particularmente porque, nos dias de hoje, histórias como essa carecem de um final feliz.”

A minha oração mais sincera é que uma nova consideração à vida de Agostinho e suas ponderações ajudará muitos nos dias de hoje àqueles que se identificam com a sua história.


Sobre o autor

Gavin Ortlund (PhD, Fuller Theological Seminary) atua como pastor sênior da Primeira Igreja Batista de Ojai em Ojai, Califórnia. Ele é autor de vários livros, incluindo “Retrieving Augustine’s Doctrine of Creation: Ancient Wisdom For Current Controversy (Recuperando a Doutrina da Criação de Agostinho: Sabedoria Antiga para a Controvérsia Atual)”, lançado em 2020 pela editora IVP Academic, ainda sem tradução para o português.


Texto original disponível aqui.

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