tim keller

Este é o segundo post de uma série de seis partes, considerando questões trazidas por cristãos leigos em ciência aos seus pastores, quando deparados com o ensinamento de que a evolução biológica e ortodoxia bíblica podem ser compatíveis. Na Parte 1, Dr. Keller deu uma visão geral da tensão entre os relatos bíblicos e científicos sobre as origens, de um ponto de vista pastoral. Neste post, ele começa a explorar os três tipos de perguntas que ele vê como mais importantes para os cristãos leigos, começando com: “Como evolução e uma leitura literal da Bíblia podem coexistir?”


Três perguntas dos cristãos leigos

Pergunta 1: Se Deus usou a evolução para criar, então não podemos tomar Gênesis 1 literalmente e se nós não podemos fazer isso, por qual razão tomar qualquer outra parte da Bíblia literalmente?

Resposta: A maneira pela qual respeitamos a autoridade dos escritores bíblicos é entendê-los como eles queriam ser entendidos. Às vezes, eles querem ser lidos literalmente, às vezes não. Devemos ouvi-los, ao invés de impor o nosso pensamento e agenda sobre eles.

Gênero e intenção autoral.

O caminho para levar os autores bíblicos a sério é perguntar: “como este autor quer ser compreendido?”. Isto é boa educação, bem como boa leitura. De fato, é uma maneira de praticarmos a Regra de Ouro. Todos nós queremos que as pessoas gastem tempo considerando se queremos ser tomados literalmente ou não. Se você escrever uma carta para alguém dizendo: “Eu queria mesmo era estrangulá-lo!”, você irá esperar que sua leitora compreenda que você está falando metaforicamente. Se ela chama a polícia para prendê-lo, você pode, com razão, se queixar de que ela deveria ter feito algum esforço para verificar se você quis ser tomado literalmente ou não.

A maneira de discernir como um autor quer ser lido é distinguir o gênero que o escritor está usando. Em Juízes 5:20, somos informados de que as estrelas no céu desceram e lutaram contra os sírios em nome dos israelitas, mas em Juízes 4, que relata a batalha, nenhuma ocorrência sobrenatural é mencionada. Há uma contradição? Não, pois Juízes 5 tem todos os sinais associados com o gênero da poesia hebraica, enquanto Juízes 4 é prosa narrativa histórica. Juízes 4 é um relato do que aconteceu, enquanto Juízes 5 é a canção de Débora sobre o significado teológico do que aconteceu. Ao observarmos Lucas 1:1 e seguintes, lemos o autor insistindo de que tudo no texto é um relato histórico verificado com relação ao testemunho de testemunhas oculares. Isto mais uma vez é um sinal inequívoco de que o autor quer ser levado ‘literalmente’ ao descrever eventos reais.

Isto não significa que tanto a intenção do autor bíblico como o gênero são sempre claramente expressos. Gênesis 1 e o livro de Eclesiastes são dois exemplos de textos na Bíblia onde sempre haverá debate, pois os sinais não são tão claros. Mas o princípio é este: afirmar que uma parte da Escritura não deve ser tomada literalmente, não implica que todo o restante também não deva ser tomado literalmente.

Gênero e Gênesis 1

Então, qual é o gênero de Gênesis 1? Prosa ou poesia? Neste caso, esta é uma falsa escolha. Edward J. Young, o especialista hebraico conservador, que lê os seis dias de Gênesis 1 como históricos, admite que Gênesis 1 é escrito em “linguagem exaltada, semi-poética” 4. Por um lado, é uma narrativa que descreve uma sucessão de eventos, utilizando a expressão wayyigtol, característica da prosa, e não têm a marca fundamental da poesia hebraica, que é o paralelismo. Por exemplo, na canção de Miriam em Êxodo 15, vemos claramente os sinais de recapitulação poética ou correção que é o paralelismo poético:

Ele lançou ao mar os carros de guerra e o exército do faraó.

Os seus melhores oficiais afogaram-se no mar Vermelho.

Águas profundas os encobriram;

como pedra desceram ao fundo.

Êxodo 15:4,5 (NVI)

Por outro lado, como muitos notaram, a prosa de Gênesis 1 é extremamente incomum. Tem refrões, declarações repetidas que continuamente retornam como é feito em hinos ou canções. Há muitos exemplos disto, incluindo o refrão repetido sete vezes, “e Deus viu que isso era bom“, bem como dez repetições de “Deus disse“, dez “Haja“, sete “e assim foi“, bem como outros. Obviamente, esta não é a forma como alguém escreve em resposta a um pedido simples para dizer o que aconteceu 5. Além disso, os termos utilizados para o sol (“luminar maior“) e a lua (“luminar menor“) são altamente incomuns e poéticos, não sendo mais utilizados em qualquer outro lugar na Bíblia; e “animais do campo” é um termo para animais que é normalmente confinado ao discurso poético 6. Tudo isso leva Collins concluir que o gênero é:

…o que podemos chamar de prosa narrativa exaltada. Este nome para o gênero nos servirá de várias maneiras. Primeiro, ele reconhece que estamos a lidar com a prosa narrativa… que inclui a definição de reivindicações de verdade sobre o mundo em que vivemos. Em segundo lugar, ao chamá-la de exaltada, estamos reconhecendo que… não devemos impor uma hermenêutica ‘literalista’ sobre o texto.7

Talvez o argumento mais forte para a visão de que o autor de Gênesis 1 não queria ser tomado literalmente é uma comparação entre a ordem dos atos criativos em Gênesis 1 e 2. Gênesis 1 nos mostra uma ordem de criação que não segue uma ‘ordem natural’ de fato. Por exemplo, há luz (Dia 1) antes que haja quaisquer fontes de luz – o sol, a lua e as estrelas (Dia 4). Há vegetação (Dia 3) antes de existir qualquer atmosfera (Dia 4, quando o sol foi feito) e, portanto, havia vegetação antes da chuva ser possível. Claramente, por si só, isso não é um problema para um Deus onipotente. Mas Gênesis 2.5 diz:

Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo.

Embora Deus não tivesse de seguir o que chamaríamos de “ordem natural” na criação, Gênesis 2.5 ensina que Ele assim o fez. É afirmado categoricamente: Deus não colocou vegetação na terra antes que houvesse atmosfera e chuva. No entanto, em Gênesis 1 nós temos vegetação antes que haja qualquer chuva possível ou qualquer homem para lavrar a terra. Em Gênesis 1, a ordem natural não significa nada. Existem três “tardes” e “manhãs” antes que haja um sol para se por! Porém, em Gênesis 2 a ordem natural é a norma 8.

A conclusão é: podemos ler a ordem dos eventos como literal em Gênesis 2, mas não em Gênesis 1, ou então (porém muito mais improvável), podemos lê-la como literal em Gênesis 1, mas não em Gênesis 2. De toda forma, não podemos ler ambos como relatos diretos de acontecimentos históricos. Na verdade, se ambos forem lidos de forma literalista, por que o autor teria combinado os relatos, uma vez que são incompatíveis (em primeira leitura)? A melhor resposta é que não deveríamos entendê-los dessa forma. Em Êxodo 14-15 (a travessia do Mar Vermelho) e Juízes 4-5 (Israel derrota a Síria comandada por Sísera) há um relato histórico associado a uma forma de ‘canção’, mais poética, que proclama o significado do evento. Pode ser que o autor de Gênesis tenha algo como isto em mente.

Então o que isso significa? Significa que Gênesis 1 não ensina que Deus fez o mundo em seis dias de 24 horas. Claro, também não ensina nada sobre evolução, uma vez que não aborda os processos de fato pelos quais Deus criou a vida humana. No entanto, isso não exclui a possibilidade da terra ser extremamente velha 9. Chegamos a esta conclusão não por desejarmos acomodar um ponto de vista científico particular, mas por estarmos tentando ser fiéis ao texto, percebendo seu significado tão cuidadosamente quanto possível.


Na próxima parte, o Dr. Keller continua a explorar estas questões mais importantes, abordando a preocupação de que um relato evolutivo das origens diminui a dignidade humana.

Continue lendo aqui.


Tradução do original disponível em  http://biologos.org/blogs/archive/creation-evolution-and-christian-laypeople-part-2

Por Leopoldo Teixeira

4 Edward J. Young, Studies in Genesis One (Presbyterian and Reformed, 1964) p.82

Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis (IVP, 1984) p.33.

Blocher, p.32.

C.John Collins Genesis 1-4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Presbyterian and Reformed, 2006.) p.44.

Meredith G. Kline, “Because it had not rained”, Westminster Theological Journal 20 (1957-58), pp. 146-157.

Vários argumentos convincentes foram apresentados por estudiosos bíblicos evangélicos para demonstrar que as genealogias da Bíblia, levando de volta para Adão, estão incompletas. O termo “era o pai de” pode significar “foi o ancestral de”. Para um relato disso, veja K.A.Kitchen, On the Reliability of the Old Testament, pp.439-443.


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