Cristianismo e Ciência: Uma Perspectiva Histórica


Por: Edward B. (“Ted”) Davis
Tradução: Moisés Lisboa


Peça a alguém na rua uma opinião sobre ciência e religião e você provavelmente ouvirá algo sobre um confronto, talvez combinado com uma referência ao julgamento de Galileu por heresia, realizado pela Inquisição Romana em 1633. A visão de que a ciência e a religião sempre estiveram — e ainda estão — envolvidas em um conflito permanente e inevitável permeia o mundo ocidental e fornece um suporte essencial para a agenda agressivamente antirreligiosa dos neoateus. Certamente não é por acaso que os dois livros do século dezenove mais comumente associados com a defesa da visão de que essas duas disciplinas estão em conflito —  A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom, de Andrew Dickson White, e History of the Conflict between Religion and Science, de John William Draper — estão disponíveis para download gratuito nos sites infidels.org e positiveatheism.org, respectivamente. (Não há nesses sites links para nenhuma das muitas fontes acadêmicas que oferecem críticas devastadoras dos trabalhos de White e Draper).

O próprio White era um historiador e, por muitas gerações, a sua fascinante narrativa de uma ciência iluminada e progressiva triunfando sobre a teologia ignorante e obscurantista ditou o tom de muitos outros estudos históricos sobre ciência e religião. Nas últimas décadas, entretanto, historiadores da ciência rejeitaram decisivamente essa visão de que existe uma guerra entre a ciência e a religião. Também foram rejeitados muitos mitos (antes aceitos como verdadeiros por grande parte das pessoas) promulgados por White e Draper — por exemplo, a alegação falsa de que João Calvino citou o Salmo 93 contra Nicolau Copérnico, ou a afirmação completamente sem fundamento de que a maioria dos cristãos antes de Cristovão Colombo acreditava em uma terra plana. Ao insistir que todos os aspectos da história da interação entre ciência e religião devem se ajustar a um pacote conceitual mal elaborado, a visão de que a ciência e a religião estão em guerra utilizou simplificações grosseiras e levou muitos estudiosos a ignorar a grande quantidade de material histórico que simplesmente não se encaixava nesse pacote. A história da relação entre ciência e religião é muito mais rica e muito mais interessante do que White e Draper poderiam imaginar. Nós iremos discutir principalmente a interação entre ciência e religião durante a Revolução Científica, um período de aproximadamente dois séculos (1500 a 1700), durante o qual a maioria dos aspectos importantes da ciência moderna emergiu. Mas, primeiro, discutiremos brevemente os primeiros 1500 anos de interação entre o cristianismo e a ciência.


O Cristianismo e a Ciência Antes de Copérnico

As discussões sobre cristianismo e ciência geralmente tomam como ponto de partida o advogado Tertuliano de Cartago. Por volta do ano 200 A.D. ele formulou a questão que se tornaria central para os estudiosos cristãos de todas as épocas: “O que Atenas tem a ver com Jerusalém? Que entendimento existe entre a academia e a igreja?” O próprio Tertuliano não tinha nenhum entusiasmo pela filosofia grega, incluindo a filosofia natural (que nós agora chamamos de ciência); entretanto, a maioria dos autores cristãos antigos tinha uma visão mais favorável, especialmente Orígenes e Santo Agostinho. No entanto, nenhum cristão realmente contribuiu para a filosofia natural até o sexto século, quando João Filopono de Alexandria escreveu comentários a respeito de vários trabalhos de Aristóteles. Mesmo naquela época, porém, Filopono foi uma exceção. As circunstâncias históricas e culturais eram tais que, na maior parte das vezes, os estudiosos Islâmicos encontraram a ciência grega e começaram a fazer suas próprias contribuições muito antes de haver uma tradição científica vibrante na Europa cristã.

Foi apenas depois da criação das primeiras universidades por autoridades eclesiásticas e seculares nos séculos XII e XIII (ou mais tarde, dependendo da localização) que os estudiosos cristãos começaram a interagir com a ciência e a medicina gregas de uma forma menos esporádica e incompleta. Antes disso, a maioria dos escritos de Aristóteles, Ptolomeu e Galeno não estavam disponíveis para estudiosos do norte da Europa nem para aqueles na Europa ocidental. Entretanto, durante a alta idade média, textos e tópicos científicos constituíam cerca de um terço do currículo de graduação (artes) nas universidades, que existiam com suporte ativo da igreja. Além disso, os filósofos e teólogos nessas universidades praticamente autônomas debatiam livremente um amplo conjunto de questões científicas e teológicas. Nesse processo, eles desenvolveram ferramentas analíticas poderosas que contribuíram para o desenvolvimento subsequente da ciência moderna.

Como esses estudiosos antigos entendiam a relação entre ciência e religião? A maioria dos escritores cristãos até a Renascença via tanto a razão quanto as Escrituras como fontes de conhecimento válidas; mas, em geral, eles não consideravam que as duas tinham a mesma autoridade. A filosofia (incluindo o que é chamado de “ciência” agora) era considerada uma “empregada da teologia” e não um empreendimento autônomo com suas próprias credenciais; ainda assim, a filosofia era uma importante área de estudo que recebia uma quantidade significativa de recursos das universidades. A Teologia era a “rainha das ciências” ou “a rainha de todo o conhecimento”. Esses estudiosos pensavam que um dos papéis do conhecimento científico era ajuda a explicar as passagens bíblicas que falavam da natureza. O autor de um comentário do livro de Genesis, por exemplo, poderia utilizar a cosmologia e a física de Aristóteles relacionando-as com as referências aos céus na história da criação. No entanto, eles não pensavam que era apropriado questionar a interpretação tradicional de um texto bíblico com base em uma teoria científica. A autoridade conferida ao livro da natureza (nome que era frequentemente dado à filosofia) não chegava nem perto da autoridade do livro das Escrituras.


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Edward B. (“Ted”) Davis é professor de História da Ciência na Faculdade Messiah em Grantham, Pensilvânia. Ele leciona sobre aspectos históricos e contemporâneos do cristianismo e da ciência e lidera o Forum Central da Pensilvânia para Religião e Ciência. Editou (em parceria com Michael Hunter) a coleção (14 volumes) The Works of Robert Boyle [Robert Boyle: Obras Completas]; publicou também uma edição independente do influente tratado de Boyle sobre Deus e a filosofia mecânica: A Free Enquiry into the Vulgarly Received Notion of Nature [Livre investigação sobre a noção de Natureza vulgarmente recebida]. Davis é autor de vários artigos publicados em periódicos acadêmicos na área de história e teologia e também em revistas populares.
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