Cristianismo e Ciência: Uma Perspectiva Histórica


Por: Edward B. (“Ted”) Davis
Tradução: Moisés Lisboa


Tudo isso mudou com o advento da nova astronomia de Nicolau Copérnico, um servidor administrativo da Catedral de Frombork — uma pequena cidade costeira no norte da Polônia. Na época, oficiais da Igreja Católica reconheceram que o calendário que vinha sendo usado desde o tempo de Julio Cesar estava cada vez mais fora de sintonia com as estrelas. Copérnico era conhecido por estar trabalhando em uma nova teoria de movimentos celestes, segundo a qual a terra se movia em redor de um sol estacionário. A igreja queria que ele participasse de discussões a respeito de como consertar o calendário. Copérnico, entretanto, preferiu trabalhar de forma isolada. Por muitos anos ele ignorou os pedidos de pelo menos um cardeal e dois bispos para que publicasse suas ideias, até que, finalmente, um jovem astrônomo luterano da Universidade de Wittenberg, Georg Joachim Rheticus, fez uma visita prolongada e foi capaz de persuadir Copérnico a permitir que seu livro fosse publicado na Alemanha. Ao contrário do que geralmente é dito — ou sugerido indiretamente –, Copérnico tinha total liberdade para explorar suas ideias enquanto trabalhava para a igreja e foi até mesmo encorajado a publicá-las.

É verdade que as ideias de Copérnico eram controversas; mas objeções científicas (em vez de objeções religiosas) constituíam a maior parte das críticas que ele recebeu. A maioria dos astrônomos antes de Galileu considerava o heliocentrismo uma hipótese altamente especulativa, totalmente desprovida de suporte baseado em observações e contrária ao senso comum.  Como o próprio Galileu disse, a sua admiração pelos copernicanos era tão grande precisamente porque eles haviam “agido com tal violência para com seus próprios sentidos a ponto de preferir o que a razão lhes dizia àquilo que a experiência sensível claramente mostrava ser o contrário”.  A incapacidade (na época) para observar a paralaxe anual das estrelas pesou muito contra a ideia da movimentação da terra, e a física Aristotélica não faria sentido se a terra não estivesse em repouso no centro dos céus. Essas considerações levaram Tycho Brahe (1546-1601), o grande astrônomo de sua geração e um oponente declarado da cosmologia aristotélica, a rejeitar decisivamente a visão copernicana. Ele defendia um modelo geocêntrico alternativo que mais tarde provou ser adequado para explicar tudo que Galileu havia observado com seu telescópio.

Resumindo, fazia todo sentido para os teólogos rejeitar a nova teoria — e permanecer aceitando uma interpretação literal da Bíblia. Vários textos bíblicos parecem descrever a terra como imóvel, ou o sol como se estivesse em movimento. Por que alguém deveria procurar alterar interpretações que simplesmente concordavam com a melhor ciência da época? Apesar de Martinho Lutero ter considerado o heliocentrismo uma ideia tola que contradizia a descrição do longo dia de Josué na Bíblia, o seu discípulo Filipe Melâncton reverenciava a astronomia matemática: na visão dele, nem a perfeição dos céus nem a certeza da matemática tinham sido afetadas pela queda de forma adversa. Ele também considerava o movimento da terra como contrário à Bíblia, mas encorajava o ensino da teoria copernicana nas universidades luteranas como uma hipótese falsa, porém útil. Assim, um jovem Johannes Kepler aprendeu sobre essa teoria com o astrônomo Michael Maestlin em Tubingen, onde ele estava se preparando para ser um teólogo. Kepler gostava da visão de Copérnico, em parte porque ele acreditava que as três partes do universo heliocêntrico constituíam uma imagem da trindade – o sol, ao centro, emanando sua luz, representando o Pai; a esfera das estrelas fixas representando o Filho; e o espaço intermediário representando o Espírito Santo. Ele percebeu que os oponentes do heliocentrismo teriam que ser convencidos de que tal visão não contrariava a Bíblia. No prefácio do seu livro mais importante, Astronomia Nova (1609), Kepler argumentou que, a fim de ser amplamente compreendida, a Bíblia tinha sido escrita na linguagem ordinária das pessoas comuns, não na linguagem técnica do astrônomo. Portanto, a Bíblia não deveria ser lida como um texto cientificamente preciso, nem usada para refutar uma teoria astronômica. Galileu usou um argumento idêntico alguns anos depois em uma carta aberta sobre interpretação bíblica e astronomia, escrita para Cristina de Lorena, a Grã-duquesa de Toscana (que herdou o título de seu marido falecido) e mãe de seu patrono, Cosme II de Médici.

O lado da Igreja

A resposta da Igreja Católica a Galileu geralmente é compreendida de forma errada. É verdade que a visão de Galileu sobre interpretação bíblica levou, em última instância, à acusações formais de heresia; mas esse não foi, de forma alguma, o único fator. O próprio Galileu concordou com seu principal crítico no vaticano, cardeal Roberto Bellarmino, que seriam necessárias provas sólidas a favor da visão copernicana antes da igreja considerar interpretações alternativas. Embora Galileu acreditasse que havia satisfeito o ônus da prova, ele promoveu as suas conclusões com mais vigor do que a evidência disponível permitia; e quando ele pareceu caracterizar o papa como um tolo incivilizado nos parágrafos finais de seu livro Dialogue on the Two Chief World Systems [Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo], ele atraiu a inquisição para si mesmo.

Kepler também se destacou em outro tipo de interação entre ciência e religião. Para alguns dos primeiros cientistas modernos a ciência se tornou uma forma de adoração religiosa, suplementando ou até mesmo suplantando os ofícios da igreja. Uma vez que teve a eucaristia negada por seu ministro porque não aceitava a doutrina luterana da ubiquidade de Cristo, Kepler derramou a sua alma profundamente espiritual em louvores arrebatadores ao criador nas páginas de seus tratados astronômicos extremamente complexos. Robert Boyle (1627 – 91), cuja piedade notável não deixou de ser percebida por seus amigos, considerava-se um “pastor” no “templo da natureza” e decidiu se tornar um químico, em parte porque pensava que assim poderia produzir avanços na medicina. Ele divulgou receitas de vários medicamentos, a fim de beneficiar a todos — especialmente os pobres — e acreditava que a ciência era crucial para que a humanidade pudesse exercer o mandato bíblico de dominar sobre a criação. Acima de tudo, Boyle acreditava que a prática da ciência no laboratório — e ele foi um dos criadores do método científico – era muito útil para a condução da vida cristã. As virtudes de um cientista (honestidade, humildade e devoção ao próprio chamado) são também as virtudes do cristão. Além disso, Boyle afirmava que quanto mais soubermos sobre a natureza e quanto mais profundamente compreendermos seus detalhes, mais seremos levados não apenas a glorificar a Deus, mas também a admirá-lo e sermos gratos a Ele; resumindo, a ciência pode nos ajudar a nos tornarmos mais piedosos. Isaac Newton (1643 – 1727) foi ainda mais longe que Boyle em seu endosso à teologia natural — o uso da ciência para fazer inferências sobre Deus. Em uma carta de apresentação adicionada à edição em Latim de seu livro, Optica (1706), ele disse que “A principal função da filosofia natural é… deduzir causas de efeitos, até que cheguemos à primeira causa, que, certamente, não é mecânica”.

Filosofia Mecânica

Outra característica central da Revolução Científica foi a filosofia mecânica, de acordo com a qual o mundo é uma máquina impessoal em vez de ser um organismo que age de forma semiconsciente segundo seus próprios propósitos. Tal posição é exatamente a visão de mundo científica moderna. Filósofos que aderiram a essa visão mecânica desafiaram as noções aristotélicas e galênicas prevalecentes, segundo as quais “a natureza” é um ser sábio e benevolente que não faz nada sem ter um propósito, abomina o vácuo e funciona como o mais sábio dos médicos. Boyle foi o defensor mais influente da nova visão, assumindo tal papel principalmente por razões teológicas. A filosofia mecânica era tão atrativa para ele exatamente porque oferecia explicações mais claras e coerentes da natureza, permitindo progresso genuíno no conhecimento prático, de acordo com o mandato descrito em Genesis. Ela também acabava com a ideia de que existia uma “natureza” semidivina que atuava como um intermediário entre Deus e o mundo; enfatizava, assim, a soberania divina: a natureza é um objeto criado, e suas propriedades e poderes criados são um assunto adequado para nossos estudos. Finalmente, ao focar a atenção na impressionante complexidade e sofisticação da ordem criada, a filosofia mecânica destacou a sabedoria, poder e bondade do próprio criador.

Durante toda a revolução científica, a ideia de que religião e ciência estavam intimamente interligadas era natural, um pressuposto que não se discutia; as duas eram necessárias para um entendimento completo do mundo. De fato, o método científico moderno é, em grande parte, um produto da reflexão teológica sobre Deus, a natureza e a mente humana. (É extremamente irônico que os neoateus afirmem que a teologia nunca fez nada pela ciência). Durante a idade média, um tema de discussão comum entre os estudiosos cristãos era a relação entre a vontade e a razão divinas. Todos acreditavam que Deus tem tanto uma razão quanto uma vontade, mas um debate acalorado ocorreu com relação a qual dessas faculdades deveria receber mais ênfase: as atividades da vontade divina são totalmente determinadas pela razão ou algumas vezes elas são inescrutáveis? Por mais surpreendente que possa parecer, essa questão abstrata da teologia medieval teve uma influência profunda em debates sobre o conhecimento científico durante a revolução científica. Que tipo de conhecimento é a ciência — é totalmente certo ou é provisional? Qual é o melhor método para entender a ordem criada – apenas a razão (incluindo a matemática) ou alguma combinação de razão e experiência? Figuras proeminentes defenderam posições distintas; enquanto Galileu e René Decartes enfatizaram o poder da razão humana criada à imagem de Deus, Boyle e Newton acreditavam que as nossas mentes criadas não eram capazes de limitar o poder de Deus exercido livremente. Em última análise, o método científico moderno do empirismo racional (uma combinação de razão e observação) se encaixa bem com o fato de que a natureza é uma ordem contingente, criada por um Deus livre e racional. Como criaturas feitas à imagem de Deus, nós podemos entender muitos dos padrões que Deus colocou no mundo; mas esses padrões devem ser descobertos por meio de observação, não impostos pela razão humana. Deus é livre para criar de maneiras que não podem ser previstas; portanto, não deveríamos ficar surpresos pelo fato de a natureza, às vezes, fazer coisas surpreendentes.

Muitos cientistas cristãos hoje continuam a colocar a ciência em um contexto teológico mais amplo, mantendo em foco ambas as formas de entender a realidade. Em minha opinião, ninguém fez isso de forma mais efetiva que John Polkingorne, um ex-físico matemático de Cambridge que agora é um teólogo Anglicano. Polkingorne enxerga a ciência e o cristianismo como empreendimentos “primos”, sendo que ambos estão tentando estabelecer “crenças justificadas”. Seu recente livro, Theology in the Context of Science [Teologia no contexto da Ciência], enfatiza o ponto crucial de que questões mais profundas sobre significado e propósito vão muito além da ciência — em outras palavras, a ciência não pode dar sentido a si mesma: por que a ciência é possível? O universo “não é apenas racionalmente transparente”, Polkingorne argumenta, mas também “racionalmente belo, recompensando cientistas com a experiência do maravilhamento diante da maravilhosa ordem que é revelada por meio dos esforços de suas pesquisas”. As leis da natureza “têm um caráter que parece direcionar o pesquisador para além do que a ciência em si é capaz de dizer, fazendo com que a aceitação materialista delas como fatos brutos não explicados seja uma posição intelectualmente insatisfatória” (pp 90-91). O fato da ciência sequer ser possível “não é uma feliz coincidência, mas um sinal de que a mente do Criador está por trás da maravilhosa ordem que os cientistas têm o privilégio de explorar” (p 37). Em resumo, “a atividade científica é reconhecida como um aspecto da imago dei” (p. 13). Isso representa um teísmo robusto, ao qual Polkingorne dá um conteúdo explicitamente cristão. Ao reconhecer que a ressurreição é “o pivô sobre o qual a afirmação do significado único e transcendente de Jesus deve se basear” (p. 135), Polkingorne busca encontrar uma crença justificada nesse evento, avaliando cuidadosamente as evidências para concluir (como fez N. T. Wright) que um milagre genuíno é a melhor explicação para as histórias da tumba vazia e para as aparições de Jesus após sua crucificação.

Este é a principal conexão entre alguém como Polkingorne e os fundadores da ciência moderna: como seus predecessores, Polkingorne compreende que a natureza é uma “ordem contingente” — e que ambas as palavras nessa expressão são importantes. Nosso conhecimento da natureza e de suas leis é possível por causa de nosso status como criaturas que exibem a imagem divina; mas é também limitado pelo nosso status de criatura — e por causa da liberdade de Deus para agir de maneiras maravilhosas e misteriosas. Como Boyle colocou em um apêndice — publicado postumamente — ao livro The Christian Virtuoso (1744), “é extremamente difícil para nós, mortais extremamente limitados, discernir a extensão plena do poder e conhecimento divino”. O encontro cristão com a ciência se resume a isto: confiança na credibilidade do livro da natureza como uma autêntica revelação divina, modulada por humildade genuína e reforçada pela reverência Àquele que escreveu o livro.


Edward B. (“Ted”) Davis é professor de História da Ciência na Faculdade Messiah em Grantham, Pensilvânia. Ele leciona sobre aspectos históricos e contemporâneos do cristianismo e da ciência e lidera o Forum Central da Pensilvânia para Religião e Ciência. Editou (em parceria com Michael Hunter) a coleção (14 volumes) The Works of Robert Boyle [Robert Boyle: Obras Completas]; publicou também uma edição independente do influente tratado de Boyle sobre Deus e a filosofia mecânica: A Free Enquiry into the Vulgarly Received Notion of Nature [Livre investigação sobre a noção de Natureza vulgarmente recebida]. Davis é autor de vários artigos publicados em periódicos acadêmicos na área de história e teologia e também em revistas populares.
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