psicologia

por Eric L. Johnson Northwestern College
Tradução: Marcelo Cabral, Gesiel da Silva e Davi Bastos

Um pressuposto básico do cristianismo é o senhorio de Cristo sobre o todo da vida cristã. O reconhecimento de seu senhorio na psicologia é especialmente problemático hoje em dia, devido ao naturalismo e ao neo-positivismo, dominantes na psicologia moderna. No entanto, um entendimento do conceito de Reino presente nas Escrituras sugere que os cristãos são inevitavelmente chamados para trabalhar pela expressão do senhorio de Cristo na psicologia. Isto ocorre enquanto o cristão busca o conhecimento e a prática psicológica diante de Deus, consciente de que toda verdadeira verdade acerca da natureza humana é uma expressão da mente de Deus, de que o pecado e a finitude limitam a capacidade de alguém apreender a verdade, de que as Escrituras são necessárias para interpretar apropriadamente a natureza humana, e de que que a atividade do Reino envolve uma resposta fiel ao senhorio de Cristo no trabalho com os outros e no conhecimento da natureza humana.

Quando o apóstolo Paulo teve o primeiro contato com Jesus Cristo, ele foi questionado por Jesus: “Por que você me persegue?”, e Saulo respondeu: “Quem és tu, Senhor?” (Atos 9:5, NVI). A voz respondeu: “Eu sou Jesus de Nazaré, a quem você persegue”, e Saulo então respondeu: “O que devo fazer, Senhor?” (Atos 22:7-10). Saulo se dirigiu a Cristo como Senhor imediatamente, e esta prática continuou por toda a sua vida. Em todas as suas cartas, assim como no restante do Novo Testamento, o termo “Senhor” foi utilizado para se referir a Jesus. Reconhecer o senhorio de Cristo envolveu repudiar todos os deuses anteriores e submeter a vida toda ao senhorio de Cristo (Harris, 1986), além de entrar em uma certa relação de autoridade com Cristo, na qual o cristão vivia em uma obediência submissa, mas ativa, a seu Mestre: “É a Cristo, o Senhor, a quem vocês estão servindo” (Colossenses 3:24). Consequentemente, tudo que o cristão faz, deve ser feito no nome de Jesus, para a glória de Deus (Colossenses 3:17; 1 Coríntios 10:31). Submissão à autoridade de Cristo por toda vida era uma marca distintiva de um cristão no primeiro século e parece ser fundamental ao cristianismo.

A ofensa do senhorio de Cristo na Psicologia

O propósito deste artigo é explorar como o senhorio de Cristo se relaciona com o campo da psicologia. Esta é uma tarefa cheia de dificuldades hoje em dia por conta do naturalismo e do neo-positivismo que permeiam a psicologia e excluem qualquer uso da religião em dentro dela. A maioria dos psicólogos argumentaria que psicologia e psicoterapia são disciplinas ou atividades que são relativamente neutras em relação a questões religiosas. Como qualquer texto introdutório sugere, psicologia, como qualquer boa ciência, deveria ser tão objetiva quanto possível, e todas as descobertas e teorias deveriam ser passíveis de verificação por qualquer parte interessada e bem informada (cf. Atkinson, Atkinson, Smith, & Bem, 1990; Kalat, 1993; Wade & Tavris, 1993); portanto, crenças especificamente cristãs não tem lugar na ciência da psicologia. Similarmente, enquanto psicoterapeutas modernos reconhecem que os valores do terapeuta não podem ser deixados de lado na terapia (Corey, 1991; George & Cristiani, 1990), assume-se, no entanto, que o terapeuta não deve ensinar certas crenças ou

“dirigir seus clientes em direção a atitudes e valores que os próprios terapeutas julgam como sendo ‘corretas’” (Corey, 1991).

Em um contexto como esse, o conceito de senhorio de Cristo simplesmente não faz sentido. Porém, como muitos têm apontado em anos recentes, a psicologia e a psicoterapia modernas não estão nem perto de serem neutras ou objetivas, como é popularmente assumido. Pelo contrário, elas são disciplinas e conjuntos de práticas historicamente condicionadas que surgiram nos últimos 100-150 anos. Ao apreciar suas contribuições à vida moderna e à conscientização, não deve ser omitido que a psicologia e a terapia são situadas em um tempo e um lugar particulares na história da humanidade. Portanto, para entendê-las melhor, devem ser colocadas dentro de seu contexto histórico. Sendo tanto formadoras quanto refletoras das atitudes do século XX em relação à natureza humana, a psicologia e a terapia modernas compartilham do positivismo, relativismo, individualismo e secularismo que dominam o pensamento moderno (Buss, 1979; Danziger, 1990; Evans, 1989; Farnsworth, 1985; Gross, 1978; Lasch, 1979; Toulmin & Leary, 1985; Vander Goot, 1986; Yankelovich, 1981). A psicologia e a terapia modernas são simplesmente versões modernas da psicologia e da terapia (embora sejam versões inusitadamente bem-sucedidas na reivindicação de serem a única abordagem confiável de estudo da natureza humana e de tratamento de problemas pessoais no século XX; Danzinger, 1979). Como resultado, o cristão não deve concluir que “somente um show pode ser exibido nesta cidade”. Quem diz que o senhorio de Cristo não tem lugar na psicologia? Quem estabelece as regras aqui? B. F. Skinner? Jean Piaget? Hans Eysenck? Por que devo compartilhar seus pressupostos sobre o alcance do senhorio de Cristo? Talvez existam formas de nos entendermos como psicólogos cristãos que sejam diferentes daquelas prescritas pelos poderes seculares reinantes na psicologia.

O REI E O REINO

A crença que o cristão está sob o senhorio de Cristo está enraizada em um tema que permeia as Escrituras do começo ao fim: o Reino de Deus. Para entender melhor como a psicologia pode ser conduzida debaixo do senhorio de Cristo, examinarei primeiro a natureza do Reino de Deus.

Deus, o Rei de Todas as Coisas

O Deus das Escrituras hebraicas apresentou-se como muito mais do que uma divindade de uma pequena tribo da Palestina; Ele revelou-se como o Deus do universo. No princípio, foi o Deus de Israel quem criou os céus e a terra. Os primeiros humanos prestavam contas a Ele e eram essencialmente obrigados a cumprir seus mandamentos.

Posteriormente, nos Salmos, o tema de seu senhorio universal aparece claramente. O salmista declara que Yahweh é um grande rei sobre toda a terra (47:2). Ele convida os reinos da terra para cantar louvores ao Senhor (68:32) e exclama alegremente diante do Rei Yahweh (98:6), e convida seus ouvintes a dizer, entre as nações, que o Senhor reina e que ele julgará os povos (96:10). “Pois tu, Senhor, és o Altíssimo sobre toda a terra! És exaltado muito acima de todos os deuses!” (97:9, NVI)(i). Os hebreus foram ensinados que todas as pessoas do mundo deveriam viver para Yahweh, já que ele é o Rei do universo, e o Rei de todas as coisas.

Súditos Rebeldes

Entretanto, as Escrituras também ensinam que a autoridade de Deus está sendo contestada em todo o mundo. A queda da humanidade ocorreu por meio do engano de um inimigo de Deus, que tentou os portadores da imagem de Deus a  se rebelarem. Boa parte do restante do Antigo Testamento apresenta um contraste entre aqueles que se submetem a Yahweh e aqueles que servem outros deuses. Considere o conflito entre Moisés e os líderes do Egito, a conquista de Canaã, a contínua luta contra os filisteus, e a disputa entre Yahweh e Elias, de um lado, e Baal e seus sacerdotes, do outro. Várias das narrativas do Antigo Testamento são estabelecidas como conflitos entre os servos de Deus e seus inimigos.

Da mesma forma, o Novo Testamento afirma que há uma enorme oposição ao senhorio de Deus na terra. Isto é demonstrado, antes de tudo, em ataques ao Filho de Deus. Não muito depois do nascimento de Cristo, um rei pagão tentou destruí-lo (Mateus 2:13-18). Mais tarde, quando ele começou seu ministério adulto, o diabo mostrou a Jesus todos  os reinos do mundo, e disse que os daria se ele adorasse   ao diabo, e não a Deus. Cristo respondeu citando o Antigo Testamento: “Adore o Senhor, o seu Deus, e só a ele preste culto” (Mateus 4:8-10). Por fim, Cristo sofreu oposição dos governantes do povo hebreu, o povo escolhido por Deus; e o registro da oposição humana a Deus no Novo Testamento chega a seu clímax quando romanos e judeus sancionam a morte do Filho de Deus.

Algumas vezes, João usou o termo mundo para denotar a humanidade em sua rebeldia e hostilidade a Deus. Ele cita Jesus dizendo que o mundo o odiou (João 15:18) e não conheceu a Deus (João 17:25). João também escreveu que, além de Deus, este mundo tem um governante, a quem se submete (1 João 5:18), que estava sendo derrotado por meio das ações redentoras de Cristo (João 12:31; 16:11). Paulo também reconheceu que há uma rebelião cósmica. Ele escreveu que “esta presente era perversa” (Gálatas 1:4), ou “este mundo” (Efésios 2: 2) é controlado pelo “príncipe do poder do ar, o espírito que agora está atuando nos que vivem na desobediência” (Efésios 2: 2). Além disso, ele entende que toda a humanidade participou desta oposição (Romanos 1-3; Efésios 2:1-3). Separados da graça de Deus, todos se opõem a Ele. Portanto, tornar-se cristão envolve ser resgatado deste “domínio” das trevas (Colossenses 1:13).

O Reino Vindouro

É neste contexto que o Filho de Deus entrou, declarando: “O tempo é chegado. O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas-novas!” (Marcos 1:15). Ele veio introduzir um novo reino, que na verdade era um velho reino: veio restabelecer o senhorio de Deus sobre os portadores de sua imagem. As boas novas que pregou eram de que o reinado de Deus estava retornando à terra de forma definitiva; justiça e retidão finalmente iriam prevalecer e os servos de Deus iriam prosperar para sempre. Esta pregação incluía um convite para que seus ouvintes se arrependessem de seus caminhos pecaminosos e cressem na mensagem de seu reino vindouro. Certas virtudes são descritas como características dos que estão no Reino (Mateus 5:3,5,20; 18:3,4,23 em diante; 13:44; 25:31-46). Tais virtudes demonstram que Deus reina sobre seu povo por meio de sua semelhança a Deus, e mostra que, no momento, este reino é um domínio espiritual, manifesto nos corações e vidas do povo de Deus. Fundamentalmente, Deus é revelado como um Rei que deseja evitar o julgamento e trazer seus súditos de volta à sanidade, à submissão, ao amor e ao perdão (Lucas 15:11; João 3:16; Mateus 22: 1-10).

Ridderbos (1962) ainda ressalta que o tema subjacente ao ensino de Jesus sobre o Reino não é, primariamente, a salvação dos seres humanos; é a manifestação e reivindicação da glória divina. É o reino de Deus: isso implica que Deus é o foco e o ponto de partida desse reino. Portanto, o reino não é simplesmente fruto da atividade humana, mas sim a realização do poder redentivo de Deus na vida humana. As parábolas de Cristo sobre o reino geralmente têm um indivíduo no centro da ação: um homem semeando (Mateus 13:37), um proprietário de terras (Mateus 21:33-41), um rei e uma festa de casamento para seu filho (Mateus 22:1) e um homem e seus servos (Mateus 24:14). Deus é esta figura central: ele é o rei que, tendo autoridade final, está ordenando os eventos de seu reino.

A vinda do reino aparentemente ocorrerá em três etapas. A vinda completa do reino ocorrerá no futuro (Mateus 13:33; 26:29; cf. Mateus. 5:5). Haverá uma consumação do reino, que ocorrerá quando ele retornar à terra uma segunda vez, no milênio (Etapa 2; Atos 1:6,7; Apocalipse 20:4) e, então, para sempre (Etapa 3). Contudo, o reino também estava sendo estabelecido durante a primeira vinda de Cristo (Etapa  1; Marcos 1:15); Cristo poderia dizer que o reino dos céus estava se afirmando vigorosamente em seu ministério, manifesto por meio de seus milagres (Mateus 11:12; Ridderbos, 1962). Entretanto, somente após sua morte e ressurreição Cristo pode afirmar que “foi-me dada toda autoridade nos céus e na terra” (Mateus 28:18). Apenas então ele de fato se tornou o Senhor Jesus Cristo, grandemente exaltado por Deus, de modo que, no fim, “toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” (Filipenses 2:9,11). Naquele dia, ele será chamado Rei dos Reis e Senhor dos Senhores (Apocalipse 19:16).

O Reino e a Nova Criação em Paulo

Embora Paulo tenha usado o termo reino menos vezes do que Jesus usou, tal conceito embasou sua teologia. Como foi mencionado antes, ele via Cristo como Senhor. Em Colossenses 1:13, Paulo afirmou que Deus “nos resgatou do domínio das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado”. Entretanto, Paulo expressa mais frequentemente um contraste entre duas eras ou mundos do que entre dois reinos (Vos, 1972). Ele escreveu sobre uma era presente, amada pelos pecadores (2 Timóteo 4:10), da qual Satanás é o deus (2 Coríntios 4:4), contrastando-a à era vindoura (Efésios 1:22). Ele também escreveu sobre ser crucificado para o mundo (Gálatas 6:14) e sobre ser parte da nova criação (Gálatas 6:15; 2 Coríntios 5:17). O entendimento que Paulo tinha da história parece ter sido moldado por um contraste entre uma existência presente que é maligna, e uma nova existência futura, da qual Paulo já estava participando. Porque o fiel está “em Cristo” (frase soteriológica mais importante de Paulo), ele ou ela já recebeu um aperitivo da redenção futura (Romanos 6:1-11), e está participando desde agora da futura ordem mundial divina.

No entanto, como muitos escritores apontaram (Ladd, 1974; Ridderbos, 1975; Vos, 1972), de acordo com Paulo, embora a vitória final de Deus tenha sido garantida, a história humana é o desenvolvimento de um profundo conflito entre as duas eras, que continua ao longo desta etapa. Há uma tensão entre o que Deus já realizou (e está realizando), e entre o mal, o pecado e a fraqueza que permanecem na experiência daqueles que estão no reino, que sofrem perseguição dos outros e dentro de si mesmos. A redenção perfeita é aguardada. Todavia, nesta era, Deus em Cristo está trazendo seu reinado à terra, por meio de seu povo.

O REINO E A PSICOLOGIA

O reino de Deus é especialmente importante para este ensaio, porque tal conceito é essencialmente histórico. O reino é um movimento dinâmico e histórico de Deus, existindo de várias formas ao longo desta era, subjugando o mal e estendendo o reinado de Deus por meio da humanidade que foi salva. Como um processo histórico, seu progresso é irregular; muito parecido com qualquer movimento social, é caracterizado por avanços e contratempos. Contudo, Deus finalmente irá prevalecer e conduzir todas as coisas a um fim, no qual ele é finalmente vindicado e glorificado. Como o reino é um processo histórico, o conceito de reino ajuda os cristãos a entenderem seus lugares no mundo e como eles deverão viver durante este período.

As raízes modernas da psicologia demonstram a relevância desta perspectiva para os cristãos que estão na psicologia. Muitas das principais figuras do início da psicologia moderna foram indivíduos criados, até certo ponto, por famílias cristãs, cujas jornadas de vida envolveram um afastamento desta orientação religiosa, incluindo pessoas tão notáveis quanto G. Stanley Hall, William James, John Dewey, J. B. Watson,

  1. F. Skinner, Sigmund Freud, Carl Jung, Karen Horney, Erich Fromm, Jean Piaget, Carl Rogers e Abraham Maslow. Os escritos destes indivíduos, sem exceção, tornaram claro que eles entendiam que seus trabalhos e o campo da psicologia ofereciam alternativas mais sólidas às formas judaico-cristãs tradicionais de construção de significado. E parte do que os conduziu foi, provavelmente, o entusiasmo característico de um revolucionário cultural. Embora haja exceções, muito da pesquisa e da construção teórica na psicologia moderna cresceu com essa dinâmica pós-religiosa implícita.

Ser um cristão na psicologia, então, é mais do que um empreendimento teórico, envolvendo apenas o relacionamento entre proposições abstratas, atemporais, por meio de uma “integração”. A psicologia moderna é um fenômeno histórico, moldada por fatores psicológicos, culturais e religiosos. Ao longo dos últimos 100 anos na psicologia, indivíduos incrédulos, em grande parte de forma inconsciente, têm vivido suas vidas em oposição a Deus, e o campo da psicologia tem sido moldado de forma considerável por essa agenda subjacente antiespiritual. Para citar um exemplo contemporâneo, muitos americanos são religiosos, bem como a maior parte das pessoas ao redor do mundo. Religião é algo muito importante na vida da maioria dos seres humanos. Por que, então, tão pouca atenção tem sido dada à religião em livrostexto introdutórios de psicologia? É benéfico para as pessoas que as realidades espirituais e contextuais em que trabalham sejam levadas a sério. O conceito do reino fornece às pessoas uma justificativa teológica para tais considerações, e as alerta para o fato de que toda atividade intelectual é um empreendimento dinâmico, culturalmente incorporado, espiritualmente carregado e relacionado ao reino.

Porém, como indivíduos devem entender a psicologia como uma atividade do reino, atividade esta que é uma expressão do reinado de Deus no mundo? Certamente isso incluiria, pelo menos, que cada um fizesse o seu melhor e vivesse de modo ético. Sem dúvida, tal qualidade e integridade glorificam a Deus. Entretanto, fazer psicologia para a glória de Deus envolve muito mais. Muitos não-cristãos advogam honestidade e qualidade. A diferença principal é que o cristianismo é necessariamente teocêntrico: esse é o motivo pelo qual os cristãos fazem o que fazem. Deus é o maior ser do universo e o centro da vida cristã. Consequentemente, fazer psicologia do reino implica, necessariamente, reconhecer sua centralidade na prática da disciplina. Assim sendo, considerarei seis componentes do contexto dentro do qual a psicologia do reino opera: a mente do Rei, a mente do Rei na criação, a influência do pecado e da graça criacional, os documentos do reino, e a resposta dos servos ao Rei.

A Mente do Rei

Deus conhece todas as coisas (1 João 3:20; Hebreus 4:13). Ele vê tudo o que as pessoas fazem (Mateus 6:8), e vê até mesmo o interior do coração humano (Jeremias 20:12). Bavinck (1918/1951) argumenta que o conhecimento de Deus não é obtido por meio da observação ou da experiência, mas é eterno. Seu conhecimento existia antes de o mundo ser formado (Efésios 1:4,5; 2 Timóteo 1:9), portanto ninguém pode acrescentar qualquer coisa ao seu conhecimento (Isaías 40: 13 em diante). Com relação à criação, o conhecimento exaustivo de sua forma deve-se ao fato de que ele a formou. Deus também conhece todas as coisas possíveis. Ele conhece o que ocorrerá na história (Isaías 46:10), visto que ele a ordenou (Efésios 1:11); mas ele também conhece o que poderia ter ocorrido, bem como todas as coisas que a imaginação humana pode construir (Plantinga, 1993). Em terceiro lugar, Deus conhece o que deveria ser. Em um mundo desordenado, há uma lacuna entre o que existe e o estado de coisas ideal. Deus sabe como ele planejou sua criação, então somente ele é capaz de revelar seu ideal para ela.

No pensamento cristão, o entendimento que Deus tem da criação é distinto da própria criação, embora a criação seja a expressão exata desse entendimento (Frame, 1987; Stoker, 1973; Van Til, 1969). Cristãos interessados nos seres humanos têm, portanto, um duplo objetivo primário: entender a natureza humana (a) como ela é, e (b) como Deus a entende. Mesmo assim, esse é um objetivo único. Conhecer algo significa conhecer esse algo da forma como Deus a conhece, porque a interpretação que Deus tem de algo precede logicamente o próprio entendimento (Van Til, 1969). Uma vez que Deus conhece uma coisa perfeitamente e de forma abrangente em todas as suas características, significância, e relações com outras coisas (Stoker, 1973; Van Til, 1969), uma ciência é válida na medida em que reconhece o entendimento de Deus sobre uma coisa. Dito de outro modo, em relação a qualquer proposição p, p é verdadeira se, e somente se, Deus acredita nela (Plantinga, 1993). Um cristão assume, então, que seres humanos e Deus podem concordar sobre muitas coisas, e é a concordância entre a mente divina e a ordem criada e a mente humana que constitui conhecimento verdadeiro.1

A psicologia, então, dentro da estrutura cristã, não é uma atividade independente, que opera separadamente em relação a Deus; ela é dependente da graça de Deus para iluminar o entendimento humano e revelar coisas sobre a natureza humana, por meio da reflexão humana, da pesquisa, e do discernimento criativo. O psicólogo cristão se submete ao senhorio de Deus em seus pensamentos e crenças. O pressuposto de que a mente de Deus é a meta epistemológica é importante por quatro razões. Primeiramente, tal pressuposto direciona as pessoas para Deus no cerne de seus conhecimentos. O conhecimento que as pessoas têm das coisas não é obtido no vácuo, mas é relacional. No conhecimento, as pessoas têm que lidar com Deus. Desse modo, os seres humanos devem buscar o conhecimento em oração. Em segundo lugar, esse pressuposto constitui um ideal pelo qual as pessoas podem e devem cognitivamente se esforçar; ele

dá aos indivíduos algo pelo que trabalhar, ao proporcionar um ideal para o conhecimento humano. Embora as pessoas não possam jamais conhecer a natureza humana de modo exaustivo (da forma como Deus conhece), elas podem conhecer algo sobre isso e podem se aproximar do que Deus entende a respeito dela (Van Til, 1969). Em terceiro lugar, as pessoas têm um acesso limitado a informações a respeito de como a natureza humana deveria ser. Métodos empíricos podem revelar as consequências de certas condições ou comportamentos, mas eles não podem dizer claramente às pessoas como avaliar essas consequências. Eles não podem tampouco fornecer critérios transculturais para a maturidade humana e para a saúde mental. Todavia, a psicologia, e especialmente a psicoterapia, assumem inevitavelmente alguns objetivos normativos em relação à natureza humana. Uma vez que a mente de Deus inclui o que as pessoas deveriam ser, a ciência e a terapia deveriam ser informadas pelo entendimento que Deus tem do telos humano, e não simplesmente da natureza humana como ela é em seu atual estado.

A quarta utilidade de considerar a mente de Deus como o ideal de conhecimento é que as pessoas precisam, em última análise, conhecer o significado de uma coisa na sua relação com outras coisas e com Deus, além de conhecer a coisa em si mesma (O’Donovan, 1986). Somente Deus conhece o significado de todas as coisas e, assim, o objetivo é de conhecer o entendimento que Deus tem do significado de uma coisa. Por exemplo, saber que a agressividade tem ao menos algum componente genético é um conhecimento muito importante; mas saber o significado dessa informação é outra questão. Tanto um fato quanto seu significado são encontrados na mente de Deus, e algo da sua mente está revelado nas Escrituras. Deste modo, a meta epistemológica cristã é ter a maior compreensão possível de tudo o que Deus pensa a respeito de algo.

Aproximar-se da verdade integral de uma coisa é o objetivo explícito de qualquer ciência, mas o cumprimento dessa meta depende da estrutura religiosa utilizada. Grande parte da ciência ocidental parece satisfeita em estudar fatos fenomenais, independentemente de Deus e do significado último desses fatos. No entanto, a ciência não deve limitar-se a isto. Ciência no reino de Deus não pode ser tão facilmente cortada do todo da vida e dos propósitos de Deus para a criação. É claro, sustentar que seres humanos podem conhecer o que Deus conhece não significa que eles de fato conhecem o que Deus conhece. Este problema é importante; no entanto, deve ser deixado para outras pessoas com mais competência e espaço do que tenho aqui.

Criação: Fora da Mente do Rei

O segundo componente do contexto da psicologia do reino é o objeto dessa ciência: a natureza humana. As Escrituras revelam que toda a criação (incluindo a natureza humana) tem uma ordem, e que essa ordem procede de Deus e testifica dele (O’Donovan, 1986). Deus criou todas as coisas e continua a mantê-las  pelo poder de sua palavra (Gênesis  1; Colossenses 1:17; Hebreus 1:3). Jesus Cristo é essa Palavra de Deus (João 1:1-14; Provérbios 8:12-36). A Palavra de Deus, então, é a fonte da ordem e da legalidade inerentes que podem ser encontradas em toda a criação (Frame, 1987), e essa Palavra é a própria inteligibilidade da criação, expressa em sua estrutura e desenvolvimento, que é o foco do cientista. Portanto, onde quer que o cientista se defronte com a criação, ele ou ela irá encontrar algo da glória, sabedoria e do poder de Deus (Salmo 19:1-3; Romanos 1:20). Este testemunho também é evidente dentro do ser humano: a consciência (Romanos 2:12-13) e a alegria de alguém (Atos 14:17) testificam Deus. Toda a criação é um sacramento (Torrance, 1969), já que cada aspecto da criação de Deus aponta além de si mesmo para seu criador, e testemunha acerca de Deus e de suas maravilhas. Visto que Deus fez todas as coisas, cada fato, cada relação entre cada fato, e cada contexto dentro dos quais os fatos e suas relações estão situadas – tanto gerais quanto específicas – em razão disso, os contextos historicamente contingentes são o que são por causa do lugar em que se situam no plano de Deus (Stoker, 1973). Como Spier coloca (1954):

Tudo o que foi criado possui significado. Em outras palavras, a criação não é autossuficiente. Nada existe por si mesmo ou para si mesmo. Tudo existe em uma coerência com outras coisas. E cada aspecto da realidade aponta para além de si mesmo, em direção aos outros aspectos da realidade. A criação não contém qualquer ponto de repouso em si mesma, mas aponta para além de si, em direção ao Criador.

Ignorar ou deixar de fora este componente na ciência é interpretar a criação de maneira equivocada. Stoker (1973) escreveu: “área alguma, e fato algum, podem ser objetiva, correta, e verdadeiramente interpretados, a menos que sejam vistos em sua absoluta dependência em relação a Deus “ (p. 59). Mas como isso pode ser? Muitos incrédulos descobrem muitas coisas sem sequer reconhecer Deus. Stoker, no entanto, distingue entre o “momento horizontal de significado” e o “momento vertical de significado”. O horizontal é o significado de uma coisa que a torna diferente de outras coisas, por exemplo, o que faz de uma árvore uma árvore, e não uma borboleta. Essa dimensão do significado pode quase sempre ser estudada por qualquer pessoa competente. O momento vertical de significado, por sua vez, é a sua criaturidade em relação a Deus e seu significado divino, e para se apreciar esta dimensão de significado é necessário um conhecimento que seja fiel a Deus.

Contudo, embora distinguíveis, estes dois aspectos do significado estão unidos na mente de Deus e, assim, eles devem estar unidos nas mentes dos servos de Deus. Ignorar   a dimensão vertical é ignorar o que é, indiscutivelmente, a característica mais importante de qualquer fato: sua relação com Deus. Obviamente, um incrédulo pode conhecer muito sobre uma espécie particular de árvore: o formato de suas folhas, o tipo de casca que ela possui e também seu fruto; mas ignorar o Autor da árvore é não compreender o seu fato preeminente. Suponha que alguém dissesse que ele ou ela sabia quem foi o criador do condicionamento operante, que ele tinha trabalhado para o governo durante a Segunda Guerra Mundial, que ele fez a maior parte de sua pesquisa em ratos, que ele escreveu um romance para ilustrar suas visões sobre o condicionamento humano, e que seu nome era Albert Bandura. Alguém poderia dizer que essa pessoa sabia quem era o criador do condicionamento operante? Da mesma forma, deixar Deus fora do entendimento de algo é não compreender o que é mais importante.

Isso é especialmente relevante na psicologia, onde o assunto é tão clara e diretamente relacionado a Deus. Em tais áreas, o testemunho de Deus ajuda a moldar o conteúdo da compreensão humana do próprio tópico. Como alguém pode entender os seres humanos à imagem de Deus sem referência a Deus, exatamente aquele que está sendo refletido? Como as pessoas podem entender corretamente coisas como motivação humana, ação humana ou autoestima sem refletir sobre a relação humana com Deus? Portanto, reconhecer Deus é necessário para a mais abrangente psicologia.

A Tendência de Obscurecer a Mente do Rei

A ideia de que os seres humanos veem as coisas de formas enviesadas tornou-se um truísmo em psicologia social (Nisbett & Ross, 1980). Estas inclinações devem-se ao aprendizado e treinamento prévios, bem como a uma propensão generalizada de ver as coisas de modos que realçam autoavaliação positiva (Myers, 1980). Contudo (talvez relacionado a esse viés de autosserviço), é aparente que seres humanos tenham, também, um viés contra Deus e tudo o que diz respeito a ele. Este viés leva as pessoas a resistir a ver as coisas da maneira como Deus vê, na medida em que tal verdade se conecta com seus relacionamentos e responsabilidades para com ele; de tal forma que, quanto mais o tópico se aproxima da dimensão vertical, o centro religioso da existência humana (Jones, 1986), mais a verdade é obscurecida. Consequentemente, as ciências humanas e especialmente a religião são as mais afetadas; a matemática e a física dificilmente parecem ser afetadas. Em psicologia, este motivo altera muito pouco a pesquisa de percepção, mas distorce julgamentos sobre maturidade e anormalidade de modo mais significativo, já que tais julgamentos são mais intimamente conectados à relação de alguém com Deus. Esta tendência de obscurecer a verdade tem sido denominada “efeitos noéticos do pecado” (Nash, 1988; Westphal, 1990).

Embora os cristãos tenham sido fundamentalmente libertos do poder do pecado por meio de Cristo, de modo algum estão isentos de sua influência. De fato, um efeito colateral perverso de ser reconciliado com Deus pode ser uma falsa autoconfiança que os leva a agir como se estivessem imunes ao erro e ao viés de auto interesse. As consequências de tais atitudes na igreja são tão desastrosas quanto evidentes. Ainda que tenham sido libertos da necessidade de se defenderem, os cristãos, dentre todas as pessoas, devem estar conscientes da resistência pecaminosa que a mente humana tem à verdade (bem como das limitações da mente humana, por causa da finitude dos seres humanos). Essa consciência deve fomentar o tipo de humildade que conduz o cristão a se submeter à verdade onde quer que seja encontrada, a balancear a confiança de acordo com as evidências, a procurar obter novos conhecimentos, e a renunciar a crenças falsas à luz de evidências adicionais.

Uma Dádiva do Rei: Graça Criacional

Mas se o pecado é tão deformador, como os não-cristãos conhecem tanto sobre o que é verdadeiro? Para  começar,  a raça humana continua cumprindo o mandato criacional do Senhor (Van Til, 1959), dado em Gênesis 1, de subjugar a terra. A ciência é uma forma de seres humanos caídos continuarem (involuntariamente) a obedecer seu Deus. Contudo, em última instância, todas as coisas boas vêm de Deus (Tiago 1:17), e visto que ele é a fonte de todo conhecimento e sabedoria, o que quer que alguém possua teve de vir dele. Isaías afirma que Deus “instrui e ensina” as habilidades do cultivo ao agricultor (28:24-29). Deus continua a ensinar os portadores de sua imagem. Essa misericórdia restringe os efeitos noéticos do pecado de forma parcial, mas significativa, permitindo que os portadores da imagem de Deus compreendam as incontáveis facetas de sua criação, a despeito de estarem alienados dele. Essa bondade de Deus para com aqueles que continuam a resistir a seus propósitos tem sido denominada graça comum (Murray, 1977; C. Van Til, 1972; Van Til, 1959). No entanto, o termo graça criacional é usado aqui para enfatizar sua unidade e continuidade com a bondade de Deus na criação. Mesmo assim, esta graça é imerecida, concedida a pecadores que vivem independentemente de seu doador. Além disso, a graça criacional é concedida para conduzir à graça redentora (Romanos 2:4; O’Donovan, 1986), e desse modo é subordinada a ela. O incrédulo deve tornar-se humilde pela bondade de Deus, e deve voltarse para ele para ser reconciliado. Independentemente, como resultado da bondade do Senhor da psicologia, não-cristãos descobriram, no século passado, muitos aspectos importantes da natureza humana. Embora o pecado continue a obscurecer alguns dos aspectos mais importantes, não-cristãos são capacitados para discernir muito da mente de Deus na ordem criacional, e aqueles que pertencem ao reino de Deus estarão ansiosos para celebrar a bondade de Deus onde quer que ela se manifeste.

Os Documentos do Reino

Especialmente à luz da motivação obscurecedora do pecado, as pessoas são afortunadas pelo fato de que a interpretação da mente de Deus na criação não ocorre em um vácuo textual. Deus revelou a verdade verbalmente no Antigo e no Novo Testamento. Por toda a sua perspicuidade, a mente de Deus na criação não é tão clara quanto sua palavra falada (Crabb, 1981). A revelação verbal encontrada na Bíblia fornece a solidez inspirada de uma visão de mundo cristã, bem como a revelação da vontade do rei para o pensamento, para o coração e para vida de seus súditos. Juntamente com o Espírito, as Escrituras provêm “óculos” divinamente inspirados (Calvino, 1556/1960), sem os quais as pessoas são incapazes de enxergar o resto da palavra de Deus na criação, da forma como ela realmente é. Além disso, as Escrituras são um bem normativo para a alma. Alguém é ordenado a recebê-las e a penetrar em sua verdade, de modo a experimentá-la, para o próprio bem. Embora se reconheça que não estejam escritos em discurso técnico-científico, esses documentos apresentam temas de importância extraordinária para a psicologia do ponto de vista do reino (Johnson, 1992). É somente se tornando completamente impregnados de uma visão da natureza humana de acordo com as Escrituras que os cristãos serão capazes de oferecer uma alternativa real à psicologia secular contemporânea, que seja mais consonante com as visões de Deus.

Ao longo das eras, os cristãos divergiram em suas visões sobre como relacionar as Escrituras (e, também, a fé e a teologia) com a filosofia e outras disciplinas acadêmicas. Uma das abordagens foi ver a palavra de Deus na criação como fundamentalmente distintas das Escrituras. Tal dualismo pressupunha que a verdade poderia ser descoberta pela razão (ou pela prática científica) independentemente da verdade revelada das Escrituras, e essa abordagem pode ser vista em alguns dos pais da igreja primitiva, bem como em mestres posteriores, tão profundos quanto, por exemplo, Tomás de Aquino. No entanto, cristãos como Tomás acreditavam que ainda havia uma relação fundamental entre a verdade transmitida pela razão e a verdade transmitida pela revelação por meio da fé. No período moderno, a autonomia da razão é radicalizada, desprendendo-se da fé, de modo que a autonomia da razão (e da ciência) tornou-se uma suposição inquestionável da epistemologia moderna (Schaeffer, 1968a; Van Til, 1969). A fé foi relegada à opinião subjetiva, enquanto o conhecimento foi (e é) considerado fato confirmado pela razão (ou pela pesquisa).

Atualmente, o perspectivismo evangélico (por exemplo, Jeeves, 1976; Myers, 1978) afirma em grande parte a autonomia religiosa da psicologia. Essa posição reconhece a importância da crença religiosa, mas argumenta que a boa ciência exige que as pessoas separem suas crenças religiosas e as aloquem em um nível epistemológico diferente. Certas versões do conceito de integração também promoveram uma separação entre a fé e outras formas de conhecimento. Essas versões pressupõem a relativa independência do pensamento teórico nas ciências em relação a fé/teologia, e implicam que a principal tarefa intelectual do cristão é integrar suas crenças religiosas com disciplinas que já foram desenvolvidas. Contudo, em tais versões, a introdução da fé na formação do conhecimento torna-se inevitavelmente um processo de segunda ordem. A psicologia é criada primeiramente por (principalmente) aqueles que estão fora do reino (que não podem ver as coisas de maneira teocêntrica); e só então é relacionada com a fé cristã. O problema é que tais versões de integração só permitem que a fé seja trazida para o projeto tarde demais, de modo que ela tem pouca assistência formativa. Além disso, embora apreciem os efeitos da graça criacional, tais abordagens são relativamente ingênuas em relação aos efeitos noéticos do pecado.

Outra antiga abordagem sobre a relação que a fé/Escrituras/ teologia tem com a filosofia e outras disciplinas tem enfatizado a unicidade da palavra de Deus na criação e nas Escrituras, a dependência de todo pensamento teórico com questões de fé, e a unidade última do pensamento humano na mente de Deus. Essa posição sustenta que as crenças últimas de fé formam uma classe especial de crenças epistêmicas, que precedem logicamente e fornecem a base para todos os outros conhecimentos. Pensadores cristãos tão diversos quanto Agostinho, Boaventura, Pascal, Kuyper, C. Van Til, Dooyeweerd e Plantinga argumentam (de diferentes modos) que todos possuem crenças de fé de algum tipo, e que essas crenças de fé podem, legitimamente, moldar o que constitui outros conhecimentos no projeto epistemológico de uma pessoa.

Um dualismo de palavras que separa a palavra de Deus na criação e sua palavra na Escritura precisa, de algum modo, ser superado, se quisermos desenvolver uma visão da natureza humana que revele a unidade dessas duas formas de discurso divino, que já estão unidos em Deus. Do ponto de vista cristão, a mente de Deus é a principal preocupação de toda a ciência. Além disso, Cristo é a Palavra de Deus, a expressão singular da mente de Deus. Consequentemente, ele é a integração das ordens racionais criadas e reveladas. A mente de Deus revelada na criação e nas Escrituras é uma unidade harmoniosa, expressa por meio de Cristo, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (Cl 2: 3). É, então, equivocado permitir que uma compreensão secular de um aspecto da palavra de Deus (a ordem criacional) se desenvolva de forma autônoma (especialmente visto que ela é, em grande medida, produzida por aqueles que trabalham em uma agenda desvinculada do reino), e então procurar relacioná-la ao outro aspecto de forma retrospectiva. Para obter maior consonância com a mente de Deus, é necessário fazer psicologia relacionando dialeticamente os dois aspectos da única Palavra de forma contínua, desde o início (usando o círculo hermenêutico; Palmer, 1969). Isso deve fomentar a concepção do senhorio de Cristo na psicologia mais completamente do que uma abordagem dualista, permitindo que os ensinamentos bíblicos inspirem cursos de pesquisa, construção de teorias e aconselhamento potencialmente frutíferos, permitindo uma crítica mais radical de modelos seculares na psicologia moderna, e levando, por fim, a uma maior validade na psicologia. (O programa da psicologia cristã não rejeita a integração, mas também não vê a integração como a única tarefa do cristão.)

Respostas do Reino à Expressão da Mente de Deus

O componente final de uma psicologia do reino é o próprio cristão. O cristão é chamado a responder a Deus e à revelação de sua mente como um membro do reino.

Conhecimento do reino e temor ao Senhor.

O livro de Provérbios contém a alegação provocativa de que o temor a Yahweh é o princípio do conhecimento (1: 7) e da sabedoria (9:10). Antes que se possa saber qualquer coisa, no sentido abrangente que será discutido nesta seção, é preciso reconhecer e reverenciar humildemente o Autor de todas as coisas. Von Rad (1972) escreveu que os sábios de Israel não postularam uma separação entre fé e conhecimento porque eles não podiam sequer conceber qualquer realidade que não fosse controlada por Yahweh. Para o sábio, o conhecimento era uma atividade ética e religiosa, conduzida sob a autoridade do Senhor da vida. Além disso, esse ensinamento de Provérbios sugere que os anciãos de Israel viram que o perigo fundamental na busca por conhecimento era começar de forma errônea, com orgulho e negligência a Deus (Von Rad, 1972). Von Rad continua, dizendo que:

A fé não dificulta — como hoje popularmente se acredita— o conhecimento; pelo contrário, é o que liberta o conhecimento, o que permite que ele realmente chegue ao ponto, e o que indica seu lugar adequado na esfera da diversa atividade humana. Em Israel, o intelecto nunca se libertou ou se tornou independente do fundamento de toda a sua existência, isto é, de seu comprometimento com o Senhor. (p. 68)

É claro que alguém poderia argumentar que esse ensinamento de Provérbios está se referindo ao conhecimento do senso comum ou à sabedoria moral, como os provérbios populares, não ao tipo de raciocínio científico na psicologia. No entanto, os sábios de Israel não ignoravam o entendimento científico. Salomão, por exemplo, era conhecido por ter um conhecimento imenso de animais e pássaros (1 Reis 4: 29-34). Contudo, mais fundamentalmente, Provérbios está abordando explicitamente o ponto de partida do conhecimento. Por que o temor de Deus deveria ser descartado em um nível mais elevado e mais abstrato de raciocínio? Pelo contrário, parece ser ainda mais importante nesse caso, para manter-se afastado da arrogância. A expressão “o temor de Deus” é simplesmente uma forma abreviada de descrever o contexto de reino, inerentemente teocêntrico, de toda atividade legítima de conhecimento.

Esse uso da noção de temor de Deus sugere que a resposta de um cristão na ciência deve ser a de obediência. De acordo com Frame (1987), o conhecimento para o cristão anda de mãos dadas com a obediência. “Nenhum dos dois é, unilateralmente, anterior ao outro, seja de modo temporal ou causal. Eles são inseparáveis e simultâneos” (p. 43). De forma similar, O’Donovan (1986) afirma que “conhecimento da ordem natural é conhecimento moral e, como tal, é coordenado com a obediência. Não pode haver conhecimento verdadeiro dessa ordem sem a sua aceitação amorosa e sem a conformidade com ela…” (p. 87). Os cristãos obedecem a Deus ao seguirem-no em suas buscas pela verdade, por onde quer que ele os conduza.

Declarar que “o Senhor reina”.

Ao simplesmente ponderar sobre alguns dos mistérios da natureza (por exemplo, como as crianças são formadas no útero; Salmo 139: 13-15), um alegre louvor é inevitavelmente produzido nos cristãos. A maravilha e glória da criação provoca uma resposta de reverência e uma apreciação da beleza e da complexidade da criação, bem como do seu Criador. Dado que as tarefas do cientista, professor ou psicoterapeuta incluem refletir sobre tal beleza, parece apropriado que ele ou ela regularmente se leve a um louvor sincero ao longo das atividades de um dia. Tal louvor é, ao menos, parte do que significa viver no reino de Deus.

A ausência desse louvor na psicologia moderna fornece mais evidências de que esse mundo está alienado de seu criador. Hoje em dia, o Senhor do universo foi banido de sua criação e relegado a igrejas e funerais. O cristão é chamado a declarar os louvores de Deus entre as nações (Salmos 18:49; 57:9; 96:3; 108:3; 96:10). Assim, a prática da psicologia no reino inclui, inevitavelmente, declarações sinceras de louvor e reconhecimento de seu senhorio.

Lutando pelo Rei.

A psicologia do reino também envolve lutar contra aquilo que é oposto ao Rei. Embora Deus esteja buscando a todos para que se juntem a ele, sua vontade continua a ser resistida na terra. A história humana consiste em uma luta pública fundamental que perdurará até que Jesus volte novamente (Berkhof, 1979; Plantinga, 1990; Schaeffer, 1968b). Durante esta era, os cristãos são chamados a participar desse conflito sobrenatural. O professor de psicologia cristã, o estudante, o pesquisador e o psicoterapeuta estão claramente implicados na disputa. O campo da psicologia não é neutro; ele pertence a Deus. No entanto, a psicologia moderna demonstra uma alienação generalizada de seu mestre; Deus não está em nenhuma de suas teorias ou práticas. É um conjunto de sistemas quase que completamente seculares em suas crenças, interpretações e conclusões.

Paulo reconheceu essa disputa no plano do conhecimento. Em 1 Coríntios 1-3, ele distingue entre dois tipos de conhecimento: de um lado, a sabedoria do mundo ou humana (1:20; 2:5; 3:19) e o conhecimento carnal (3:3), e do outro, e a sabedoria de Deus (1:21) e palavras ensinadas pelo Espírito (2:13). Ele advertiu os colossenses a não serem escravizados (no contexto original, uma metáfora de guerra) “a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo.” (Colossenses 2:8). Aparentemente, eles foram expostos a certos erros que Paulo percebeu serem heréticos. Ele lhes disse para evitarem serem capturados pelo pensamento da velha natureza (verdade que vem estritamente de fontes humanas caídas) e para estarem enraizados em Cristo, que é a fonte da nova sabedoria. “Vocês morreram com Cristo”, ele escreveu, “para os princípios elementares deste mundo” (2:20); Viva o novo em Cristo, confiante de que o seu novo eu “está sendo renovado em conhecimento, à imagem do seu Criador” (3:10). O reino tem uma nova sabedoria, e participar do reino significa submeter-se a essa sabedoria e rejeitar a sabedoria dessa era/mundo (Dennison, 1985). Em 2 Coríntios 10:3-5, Paulo deixa bastante explícito o desafio enfrentado por que aquele que crê:

Pois, embora vivamos como homens, não lutamos segundo os padrões humanos. As armas com as quais lutamos não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruímos argumentos e toda pretensão que se levanta contra o conhecimento de Deus e levamos cativo todo pensamento, para torná-lo obediente a Cristo.

Paulo chamou seus leitores a resistir à incredulidade, onde quer que ela aparecesse, e a examinar cada pensamento, a fim de submeter todos os pensamentos rebeldes à “obediência de Cristo”. Para o psicólogo cristão, isso incluiria lutar com as teorias e interpretações de pesquisa que compõem a psicologia moderna, e fazer passar pelo crivo as especulações ímpias e a independência orgulhosa que são tecidas na versão moderna da disciplina, muitas vezes de forma tão sutil que pouco do que é diretamente subversivo será aparente para o olho destreinado. No entanto, suposições tais como as de que seres humanos não são mais do que organismos ou máquinas pensantes semelhantes a computadores, de que seres humanos não são amplamente responsáveis por seu comportamento, de que moralidade é biologia, de que a meta mais importante da terapia é felicidade autodeterminada, e de que a normalidade não pode ser determinada de modo absoluto, permeiam escritos da psicologia moderna. O psicólogo do reino é chamado a extrair tais tópicos na tapeçaria da psicologia e a tecer novamente a disciplina com os pressupostos de Deus.

Abraham Kuyper, teólogo, fundador da Universidade Livre de Amsterdã, e primeiro-ministro da Holanda (1901-1905), deu muita atenção ao lugar construtivo do cristão no mundo. Ele argumentou (1898) que as mentes pensantes foram separadas em dois campos distintos por causa da regeneração – a mudança que ocorre no cristão devida à salvação em Cristo. De acordo com Kuyper, quando o poder da regeneração é efetuado, ele leva necessariamente à formação de dois tipos de ciência: uma fundada em princípios incrédulos, inevitavelmente deformada pelo pecado, e outra fundada na fé em Deus e submissa às Escrituras. Ele acreditava que os regenerados e os não-regenerados estão trabalhando essencialmente em dois projetos diferentes, cada um indo em direções diferentes. Religiosamente falando, não pode haver nenhuma unidade última da ciência, porque a existência do reino de Deus criou um conjunto diferente de ciências (ciências do reino?), que são conduzidas para dar glória a Deus  e que são moldadas por pressupostos e por uma agenda diferentes daqueles das ciências criadas pelos não-cristãos. Os pressupostos dos dois grupos podem diferir de tal forma que até mesmo o que constitui as bases dos argumentos pode não ser compartilhado. De acordo com Agostinho, a regeneração leva inevitavelmente a uma antítese fundamental entre a cidade (ou reino) de Deus e a cidade do Homens.

No entanto, Kuyper (1898) reconheceu que os incrédulos podem obter verdade. Ele escreveu que os cientistas que praticam os dois tipos de ciência não diferem em medir ou observar; da mesma forma, lógica e linguagem são, de um ponto de vista formal, as mesmas para ambos os grupos. Consequentemente, muitas teorias e interpretações de dados serão válidas (sua obra sobre a graça comum é mais extensa do que talvez qualquer um na história da igreja; cf. H. Van Til, 1959. Infelizmente, a maior parte disso permanece em holandêsi). No entanto, Kuyper acreditava que os efeitos noéticos do pecado predispõem os incrédulos a obscurecer a verdade em pontoschave, resultando assim em ciências que estão atuando em uma direção não-teocêntrica.

Assim, segundo Kuyper, parte da disputa pela verdade de Deus em seu reino envolve identificar a verdade que está sendo usada a serviço de outros deuses, e reivindicá-la para sua verdadeira fonte e dono. No entanto, uma grande dificuldade permanece: como o cristão discerne o que é válido, enquanto ele ou ela argumenta em favor da fé no âmbito da psicologia? Essa tarefa é incrivelmente difícil na situação atual, dadas as profundas pressões e restrições sociais sobre os cristãos nos centros de poder acadêmico da cultura moderna, para que pensem secularmente e suprimam a interpretação cristã. Esse contexto pode levar a compromissos com o pensamento secular, um resultado denominado síntese (Runner, 1982). Através da educação e da exposição ao pensamento não-cristão, antes e depois de se tornar um cristão, o cristão inevitavelmente mistura a verdade e o erro. No entanto, Runner argumenta que os cristãos são chamados à tarefa de purificar, ou reformar, o seu pensamento da influência secular ou pagã, para uma conformidade cada vez mais próxima à palavra de Deus na criação e na Escritura. Parte de nossa tarefa como psicólogos do reino incluiria, portanto, a autocrítica, de modo que resistamos à nossa própria tendência para a síntese com o pensamento não-cristão, mesmo enquanto aproveitamos tudo o que é realmente bom na psicologia secular.

Quais são alguns dos tópicos de psicologia que devem ser contestados ao passo que os cristãos interagem com eles na psicologia moderna? Por causa de diferentes pressuposições, alguns tópicos seriam quase inúteis de se discutir (por exemplo, o pecado ou o Espírito Santo). No entanto, a conversa poderia ocorrer (e tem ocorrido) em uma variedade de outros assuntos, incluindo tópicos como a ênfase na personalidade ao longo de toda a disciplina (Van Leeuwen, 1985), valores em aconselhamento (Tjeltveit, 1989), as contribuições positivas da família e da tradição social para a auto formação do indivíduo, a importância da narrativa para o desenvolvimento moral (Vitz, 1990), critérios éticos para estabelecer anormalidade e bem-estar psicológico, a influência do individualismo e do capitalismo na profissão de aconselhamento (Dueck, 1995); a validade do mal e da culpa, a realidade da volição e o impacto da escolha humana na neuroquímica, e o valor da religião para a psicologia (Jones, 1994).

Deve-se ressaltar que o Senhor deseja que esse conflito não seja engajado com as armas mundanas da calúnia e da arrogância, mas com as “armas” do reino, como o amor, a humildade e o respeito por todos os portadores da imagem de Deus. O reino não é antitético a um pluralismo baseado em princípios, que ouve respeitosamente e aprende com os outros, a partir do ponto de vista da fé.

Cooperando com aqueles que estão fora do reino.

Relacionado ao ponto anterior, muitos psicólogos cristãos estão trabalhando em áreas que são relativamente livres de embates: por exemplo, a elaboração de testes de desempenho, pesquisas sobre visão, tratamento de retardo mental ou ajuste de funcionários. Tal trabalho geralmente envolve atividades cooperativas com não-cristãos. Embora isso seja óbvio, deve ser explicitamente dito que tal atividade, quando conduzida pela fé, consiste em uma participação fiel na graça criacional de Deus, e é um trabalho legítimo e valioso do reino. Tais esforços não são diferentes daqueles de ensinar em uma escola pública ou de trabalhar nos serviços de saúde. Os cristãos devem cooperar plenamente com todos os que estão trabalhando com a graça criacional. A cautela só é justificada se a atividade ameaça o bem maior da graça redentora.

Desenvolvendo uma psicologia cristã.

Como parte da resposta do cristão à mente de Deus na criação, ele é chamado a ser re-criativo. Os psicólogos cristãos têm mais a fazer do que peneirar os escritos de seus colegas seculares de forma parasita. A fé cristã tem uma agenda própria que pode ou não se assemelhar à agenda de qualquer psicologia secular. Dentro do reino de Deus, a comunidade cristã de psicólogos é livre para traçar um novo território na psicologia. Ao tornarem-se imersos nas Escrituras e na tradição cristã, os psicólogos cristãos podem ser capacitados a descobrir novos fatos e teorias, elaborando novas linhas de pesquisa para entender mais fielmente a natureza humana como ela é, como Deus a vê. Os psicólogos cristãos são livres para levar mais a sério a realidade da escolha humana e da responsabilidade pessoal; o amor agápico, a esperança, a alegria, a humildade e outras virtudes distintamente cristãs; o pecado e seu desenvolvimento, a culpa e a hipocrisia; o demoníaco; definições biblicamente influenciadas de anormalidade e maturidade; a formação espiritual, segundo a graça; a habitação e o poder do Espírito Santo; o desenvolvimento da fé salvadora; o impacto da união com Cristo na auto compreensão, na autoeficiência e no locus de controle de alguém; e motivação teocêntrica; isso apenas para nomear alguns temas. Fazer isso provavelmente levaria a um corpo de pesquisa e teoria que é qualitativamente distinto da produção da psicologia moderna. Os cristãos na psicologia devem fazer mais do que simplesmente contribuir para o campo da psicologia como ele é. Eles têm um dever para com Deus e para com seu povo de trabalhar em direção a uma psicologia que seja completamente consistente com uma estrutura cristã, independentemente de sua aceitabilidade pelos secularistas. Devido à sua dificuldade, esta parte da tarefa foi pouco realizada até agora; entretanto, algum trabalho promissor foi feito em vários setores (por exemplo, Adams, 1979; Anderson, 1990; Benner, 1988; Crabb, 1988; Evans, 1989; Narramore, 1984; Oden, 1990; Powlison, 1988; Roberts, 1990, 1993; dentre outros).

Integração dentro do reino.

Nada disso significa que a integração com o restante da psicologia moderna é desnecessária. No entanto, deve ser vista como secundária, em vez de primária; subordinada à tarefa de desenvolver uma estrutura, corpo de pesquisa, teoria e prática mais submissa ao todo da mente de Deus do que o que é aceitável para a psicologia moderna. Esta prioridade sugere um deslocamento das noções tradicionais de integração, que a viam como sendo fundamentalmente interdisciplinar, e não intercomunitária. O psicólogo do reino não procura integrar a fé à psicologia, pois a psicologia, como toda a vida, é uma expressão da fé. Em vez disso, o objetivo é descobrir como fazer uso do trabalho em psicologia produzido por diferentes comunidades de fé (por exemplo, a da psicologia moderna). O problema não é tanto um problema de categoria quanto um problema de tradução (cf. MacIntyre, 1988). Esse tipo de problema exige que se trabalhe para entender o que essa comunidade quer dizer, antes de traduzir ou reconceitualizar seu trabalho em psicologia em termos do que os cristãos querem dizer (em oposição à visão tradicional que aceita o significado de um texto como sendo relativamente não problemático). Quando a integração é vista como o dever primário, um passo fatídico (dualista) já ocorreu: uma ruptura ocorreu entre a fé e a razão/ciência, que a integração, então, tenta transpor. Embora estranhamente compatível com a modernidade, essa visão da integração infelizmente enfraquece o papel interpretativo que uma estrutura cristã deve desempenhar em seu pensamento. Além disso, aumenta a probabilidade de que os cristãos possam, involuntariamente, sintetizar suposições seculares não examinadas com seu sistema de crenças. Por último, isso limita a criatividade do cristão, tornando impossível mover-se conceitualmente para além do trabalho de outras comunidades.

No entanto, tendo dito isso tudo, a pesquisa e a teoria feitas pelos que estão fora do reino de Deus devem ser recebidas de forma grata, como devidas à graça criacional, na medida em que refletirem a ordem criada fielmente. Essa perspectiva é especialmente necessária hoje em dia, já que a maior parte da boa pesquisa em psicologia está sendo feita por não-cristãos. Consequentemente, a integração, quando adequadamente concebida, continua sendo uma tarefa importante.

A integração dentro do reino envolve ao menos cinco etapas. O primeiro passo é simplesmente a ativação da estrutura avaliativa cristã (incluindo crenças de fé, tais como a história cristã — criação, queda, redenção e consumação — e outras crenças relacionadas à natureza humana, como por exemplo, a personalidade). Ativar esse esquema de visão de mundo é um pré-requisito para o pensamento crítico cristão; de outra forma, as crenças de fé de alguém formam um gueto na mente da pessoa, não fornecendo nenhuma influência avaliativa no material secular que se lê. Segundo, o esforço é feito no sentido de entender a descoberta ou conceito que é o foco da integração. Esse entendimento envolverá referência à estrutura última do autor/escola, a fim de interpretar adequadamente seu sentido pleno. Terceiro, a descoberta ou conceito deve ser aferido em termos de sua compatibilidade com as Escrituras, bem como se ele atende a outros critérios de validade, incluindo respaldo teórico, procedimentos estatísticos, delineamento da pesquisa, amostragem, evidência empírica e assim por diante. Problemas como, por exemplo, excluir certas amostras ou heterodoxia extrema (por exemplo, a afirmação de que todos os seres humanos têm um eu-deus interno) podem quebrar a confiança na descoberta e poder exigir sua completa rejeição. Este passo tem sido reconhecido como essencial para os cristãos em psicologia (por exemplo, Crabb, 1977). Se o conceito passar neste teste, seu grau de complexidade teórica e, correspondentemente, o nível de integração envolvido (Larzelere, 1980) precisarão ser avaliados. Fatos fisiológicos simples requerem pouco em termos de reinterpretação (talvez simplesmente reconhecendo sua criaturidade), ao passo que fatos terapêuticos podem exigir uma transformação mais radical. Por fim, dependendo desses julgamentos prévios, segue-se a tarefa da tradução ou reconceituação cristã. Essa etapa implica compreender a descoberta ou conceito original de acordo com uma estrutura avaliativa e gramática cristãs.

Como um primeiro exemplo, considere a relação entre ilusões positivas e saúde mental. Foi descoberto que o autoengano resultou em uma melhor adaptabilidade e em uma maior felicidade geral, o que levou alguns a concluir que algum nível de autoengano é essencialmente bom (Taylor, 1989). Um cristão pode, no entanto, apreciar tais correlações e, ainda assim, reconhecer que o autoengano é geralmente um mal, de modo que as boas consequências de tal atividade cognitiva são apenas relativamente boas, mas não necessariamente glorificam a Deus. Aqui, a integração envolve uma reconsideração da avaliação moral de um achado. Ao contrário do que diz o positivismo, tais avaliações morais fazem parte da psicologia (como evidenciado por avaliações seculares do autoengano, como a de Taylor). Como um outro exemplo, a orientação naturalista da pesquisa sobre locus de controle (LOC) levou à suposição de que há apenas duas orientações de LOC que formam as extremidades de um continuum: interno e externo. No entanto, um entendimento cristão sofisticado é, necessariamente, mais complexo. Deus pode ser visto como a fonte suprema da bondade de alguém, para quem esse conhecimento serviria para aumentar seu próprio senso de auto eficiência. Assim, um cristão pode estar em uma forte relação com Deus, tanto interna quanto externamente. Neste exemplo, a integração envolve a suposição de conceitos modernos de LOC juntamente com o reconhecimento da relação única e dependente de um cristão com o Criador, que resulta em esquemas mais complicados de LOC (Stephens, 1985).

O conceito de auto realização de Maslow requer um cuidado ainda maior no processo de integração. Em uma primeira aproximação, as noções de auto realização e santificação parecem semelhantes. Entretanto, após um exame mais detalhado, vê-se que a noção de Maslow foi expressa dentro de uma comunidade linguística e de uma estrutura naturalista, nos quais o self é visto como o princípio supremo, orientador da vida humana (Maslow, 1954, 1970).6 Para o cristão, no entanto, o relacionamento é mais importante, principalmente o relacionamento de alguém com Deus. É porque Deus é o centro do universo que cristãos de todas as épocas acreditavam que o mais elevado estado motivacional que uma pessoa era capaz envolvia, necessariamente, experienciar o seu Criador/Redentor. Ao passo que podemos reconhecer semelhanças entre as experiências culminantes de cristãos verdadeiros e de não-cristãos, o próprio Maslow não acreditava que a religião dogmática fosse compatível com a autorrealização. Os cristãos também devem tomar cuidado para não igualar similaridade formal e identidade real. Babuínos e humanos têm muitas semelhanças, mas as diferenças são bastante profundas e são a razão pela qual eles estão agrupados em diferentes famílias. Negligenciar essas diferenças não seria tolerado na biologia. O problema é ainda mais sério com conceitos psicológicos como o de autorrealização, porque considerações sobre o princípio máximo de motivação da vida humana são tão dependentes de fórmulas socialmente construídas que envolvem compromissos fundamentais morais, teológicos e de visão de mundo. A tradução, aqui, pode exigir que se deixe o termo autorrealização para os humanistas. A tarefa integrativa levará a comunidade cristã a aprender com a pesquisa de Maslow sobre a mais alta forma de vida humana que pessoas modernas que não estão em Cristo alcançam, e a notar semelhanças com a experiência cristã; ainda assim, pode ser necessário qualificar o correlato cristão como Cristo-realização ou algo semelhante, que comunique a base relacional teocêntrica inerente do mais alto nível da motivação humana a partir de um ponto de vista cristão, e tentar descrever suas características únicas.

Por causa da graça criacional de Deus, grande parte da teoria e da pesquisa de não-cristãos será valiosa. Raramente alguma descoberta ou teoria psicológica proposta de forma séria não terá qualquer valor de verdade. Quando algum erro é encontrado, geralmente é um parasita da verdade. Consequentemente, juntamente com qualquer modificação, a tradução exigirá a preservação de qualquer material conceitual que seja considerado válido. (Deve-se acrescentar que, ao longo do processo integrativo, é preciso sempre estar aberto para ter a sua estrutura avaliativa corrigida, isso dentro de certos limites teóricos, teológicos e epistemológicos).

Nem todos no reino, no entanto, concordam sobre o valor da integração. Muitos que fazem parte do movimento de aconselhamento bíblico questionam o mérito de receber percepções de não-cristãos com relação à alma, particularmente percepções psicoterapêuticas (Adams, 1973, Bobgan & Bobgan, 1987; Ganz, 1993; MacArthur & Mack, 1994; por exemplo, o Master’s College não tem curso de graduação em psicologia). Evidentemente, sua principal preocupação  é o aconselhamento; e é aqui que suas críticas são as mais convincentes. Eles soaram um alarme necessário no reino,  a respeito do senhorio de Cristo sobre o aconselhamento, particularmente em sua preocupação de que uma confiança secular no ego ou nas estratégias humanas esteja substituindo a confiança fiel no poder de Deus de trazer cura à alma. O movimento de aconselhamento bíblico se aproveitou de questões que são, possivelmente, duas das mais importantes da vida humana: quem será o Senhor e como alguém se transformará em sua semelhança? Entretanto, a despeito dessa reação à síntese de muitos terapeutas cristãos bem-intencionados; e por causa de uma ênfase extrema na antítese e no pecado, acrescido do fato de apresentarem um engajamento acadêmico pobre e frio, e, em alguns casos, da falta de caridade bíblica (por exemplo, Bobgan & Bobgan, 1989), sua crítica à psicologia moderna e da integração simplificou demais a interpretação dos textos da psicologia secular e gerou muita confusão entre o povo de Deus. Embora existam diferenças nesse grupo (por exemplo, Adams, 1986, reconheceu que a psicologia pode ser legítima), sua abordagem geral se aproxima muito de abordagens fundamentalistas e reacionárias. Eles são culpados de não levar suficientemente a sério a graça criacional de Deus e, parecem, em grande medida, ignorantes das maneiras pelas quais Deus projetou a genuína formação de conhecimento para se desenvolver em uma cultura pluralista. O viés não-cristão influenciou o conteúdo e a prática da psicologia moderna, mas também é verdade que Deus revelou muito sobre o cérebro, o aprendizado, o desenvolvimento humano, a motivação, as influências sociais, as formas de anormalidade e até mesmo sobre práticas de aconselhamento úteis por meio dos trabalhos de psicólogos seculares. O Senhor reina e ele usa até mesmo aqueles que se opõem a ele para glorificá-lo (Van Til, 1972). Em total concordância com a demanda do aconselhamento bíblico por uma orientação cada vez mais teocêntrica, os psicólogos do reino devem, não obstante com gratidão, usar as dádivas que Deus concedeu aos não-cristãos através do processo de pensamento crítico cristão conhecido como integração, de um modo submisso, que conceitua a verdade sob a autoridade de Deus e sua palavra.

Enxergando os seres humanos de modo multidimensional e hierarquicamente.

Os seres humanos são extraordinariamente complexos; “A mente e o coração de cada um deles são insondáveis!” (Salmo 64:6). Somente Deus tem conhecimento completo dos seres humanos. Para conhecer a natureza humana tão integralmente quanto possível é necessário explorá-la a partir de muitos pontos de vista diferentes, incluindo o biológico (genético, hormonal, neurológico, morfológico), o ambiental (físico, interpessoal, econômico), o comportamental, o cognitivo, o afetivo, o motivacional, o volitivo, o biográfico, o caracterológico, o ético, e o religioso; e utilizando diferentes métodos, incluindo o observacional, o estudo de caso, o intercultural, o comparativo, o experimental, o estatístico, o narrativo, o discursivo, o desconstrutivo e o fenomenológico. Obviamente, muitas dessas perspectivas e métodos tem sido explorados e usados na psicologia moderna. No entanto, devido à complexidade da tarefa e devido a pressupostos neo-positivistas e naturalistas, que limitam o uso explícito de valores morais na disciplina, a psicologia moderna tem negligenciado algumas perspectivas e tem sido incapaz de fornecer uma estrutura avaliativa global na qual interpretar, alocar e relacionar as miríades de fatos que foram encontrados até agora. No entanto, conhecer as coisas como Deus as conhece requer que se veja tanto quanto possível suas complexidades multidimensionais, e também significa compreendê-las em suas inter-relações hierárquicas. Todas as perspectivas sobre a natureza humana são importantes, mas algumas são mais importantes do que outras – como as dimensões especificamente humanas, especialmente as religiosas. Como um exemplo, as descobertas biológicas e comportamentais precisam ser interpretadas dentro de uma estrutura maior, centrada na pessoa, que reconheça a escolha e a responsabilidade humanas, e essa estrutura, por sua vez, deve ser interpretada dentro de uma estrutura teocêntrica, na qual todos os seres humanos são compreendidos diante de Deus. Progresso na articulação de tal estrutura interpretativa pode ser visto no trabalho de Evans (1989), Farnsworth (1985) e Van Leeuwen (1985).

Trabalhando em direção à mente do Rei.

Por fim, os psicólogos do reino devem tentar compreender o entendimento de Deus sobre o telos (ou o fim/a meta) humano através de suas atividades de campo. Deus sabe como os humanos deveriam ser. Através da Escritura, da experiência e da pesquisa, as pessoas podem chegar a uma compreensão dos desejos e ideais de Deus para a humanidade. Servir ao Senhor requer que o psicólogo cristão implemente os valores e normas revelados por Deus em sua própria vida, ajude os outros a se tornarem o que Deus deseja que eles sejam, e faça o que puder para trazer justiça para aqueles que sofrem. Consequentemente, os cristãos na psicologia, por meio da fé, serão atraídos para a vontade de Deus em suas vidas pessoais: lidando eticamente com outros, evitando imoralidade e engano como definidos biblicamente e ajudando outros de forma autossacrificial (o que Farnsworth, 1985, denominou “integração incorporada” ). Indo mais longe, o pesquisador cristão pode ser atraído a fazer pesquisas que enfoquem as necessidades dos pobres ou deficientes; ao passo que o professor de psicologia evitaria condenar o comportamento homossexual ao ensinar sobre orientação sexual, poderia, contudo promover a conscientização do pecado da homofobia. Vislumbrando o telos humano para seus aconselhados, o psicoterapeuta cristão aconselharia de acordo com a compreensão de Deus da maturidade humana de maneira sábia e amorosa, mas inevitavelmente, buscando promover um relacionamento mais profundo e mais rico entre Deus e seus clientes, conforme apropriado. Além disso, parece que os terapeutas do reino não permitiriam que apenas considerações financeiras ditassem a carga de trabalho, mas estenderiam a mão a aqueles que não têm seguro e não tem condições de pagar as mesmas taxas que pessoas da classe média (Dueck, 1995).

Obviamente, esse tipo de trabalho tem sido feito há décadas. Contudo, uma distinção deve ser feita entre a atividade do reino que se ocupa da graça redentora, feita na igreja e para ela, dentro de um contexto explicitamente cristão, e a atividade do reino que se ocupa da graça criacional, como: ministério para outras pessoas que não enfoca o núcleo religioso de suas vidas (ao menos não diretamente), feito dentro de um contexto cultural mais amplo que a igreja. O primeiro tipo de atividade do reino inclui desenvolver uma psicologia cristã, ensinar psicologia em instituições cristãs, aconselhar cristãos, avaliar e aconselhar missionários, escrever para a comunidade cristã e treinar famílias ou conselheiros leigos em igrejas, tudo isso com clara confiança na Bíblia e no Espírito Santo. A atividade do Reino que se ocupa com a graça criacional, por outro lado, inclui coisas como ajudar pessoas em liberdade condicional a permanecerem empregadas, avaliar as necessidades educacionais de crianças com dificuldades de aprendizagem, fazer orientação vocacional, ensinar em instituições seculares, aconselhar vítimas de desastres, ajudar famílias a aprenderem a se comunicar, escrever para a comunidade secular, ou administrar medicação para aliviar a depressão, sem um reconhecimento explícito e contínuo da Bíblia ou da presença de Deus. Esse trabalho é fundamentalmente um bem que testifica da bondade de Deus e manifesta o amor de Deus através dos cristãos aos seus vizinhos.

No entanto, como indiquei acima, há uma unidade subjacente entre a graça criacional e a redentora, na medida em que a primeira é dada para levar à segunda. A atividade do reino da graça criacional serve, em última análise, aos propósitos redentores de Deus, porque aponta para o Único que é o Salvador de todos (1 Timóteo 4:10). Além disso, os cristãos precisam estar estrategicamente colocados e sabiamente envolvidos na vida da cultura pós-cristã. Os cristãos devem estar comprometidos com este tipo de trabalho em oração, desde que não façam nada que se oponha ao programa da graça redentora.

O problema é que cristãos envolvidos com a psicologia podem, involuntariamente, trabalhar com não-cristãos de maneiras que vão contra a agenda da graça redentora e da ordem criacional de Deus. Por exemplo, uma pessoa em um aconselhamento pode procurar aliviar os sentimentos de culpa que ele experimenta, por causa de seu caso extraconjugal em andamento. Ajudar a pessoa aconselhada a reprimir sua consciência sem abordar o pecado seria, de um ponto de vista cristão, antiético e antirredentivo. Viver no reino exige que os psicólogos façam tudo o que fazem para a glória de Deus, mesmo que isso contrarie as normas éticas dos não-cristãos. De acordo com a comunidade de aconselhamento fundamentalmente secular e individualista, os conselheiros devem trabalhar dentro do sistema de valores do aconselhado. No entanto, em alguns casos, as dificuldades dos clientes existem em função da patologia de seus valores. Com tais pessoas, a melhor coisa que o conselheiro com a mentalidade do reino poderia fazer seria ajudá-las a encontrar valores melhores: os valores do reino. Naturalmente, isso deve ser feito com integridade, sabedoria e respeito pelo aconselhado. Além disso, isso pode ter implicações econômicas, pois certo respeito pelo cliente levará, às vezes, à recomendação de que determinado cliente encontre outro conselheiro que compartilhe mais de seus valores. No entanto, o conselheiro orientado pelo reino não pode contribuir com a jornada de um cliente para longe do reino. Muito do aconselhamento sobre questões relativas a escolhas morais, motivação, culpa, propósito na vida, interpretação do estresse e auto aceitação tem um núcleo essencialmente religioso. Os psicólogos cristãos devem exercer grande cuidado para não conduzir, direta ou passivamente, os aconselhados numa direção não-teocêntrica. Seja atuando principalmente com cristãos ou não-cristãos, o psicólogo do reino procura ajudar os outros a se moverem tanto quanto possível na direção da mente de Deus, no que diz respeito à normalidade e maturidade humanas, e a minimizar, na medida do possível, o que promoveria, de forma inconsciente, um movimento para mais longe de Deus.

O psicólogo cristão é convidado a participar do reino de Deus. Os poderes seculares que, basicamente, controlam  os padrões, os periódicos e as instituições educacionais da psicologia, irão dificultar esse trabalho; isso torna até mesmo difícil a compreensão de uma tarefa como essa, especialmente para aqueles treinados em tal contexto. No entanto, o psicólogo cristão que está participando do reino de Deus será movido a colocar em questão os pressupostos desta era, a resistir conformidade a ela, e a buscar a transformação pela renovação da mente, do coração e da vida, para servir alegremente ao Senhor da psicologia.


NOTAS DO TRADUTOR

N.T.: no artigo original, todos os textos bíblicos mencionados são da New American Standard Bible. Nesta tradução, optamos pelo uso pela Nova Versão Internacional.

I NT.: Nos últimos anos diversas obras de Kuyper têm sido traduzidas para o inglês.

II NT.: No original, “embodied integration”.


NOTAS DO TEXTO

  1. Platão acreditava que havia várias “Ideias” ou “Formas”, que eram conceitos universais que realmente existiam. Em contraste, o mundo era cheio de cópias inferiores destas Ideias. De acordo com Platão, o objetivo do conhecimento humano era entender essas Ideias, as verdades universais não contaminadas com suas instanciações neste mundo. Superficialmente, pode parecer como se a posição que está sendo delineada aqui é platônica. Ambas as posições assumem alguma realidade extraempírica, que é a base do conhecimento humano. Entretanto, há ao menos quatro diferenças. Primeiramente, as Ideias de Platão eram, de algum modo, últimas e irrevogáveis, estando até mesmo acima de Para Platão, Deus era sujeito às Ideias tanto quanto os humanos, pois ele usou-as como um modelo na formação do mundo (Timeu). O cristianismo assume que Deus é último e irrevogável. Segundo, Platão estava se referindo a conceitos universais. A mente de Deus abrange muito mais que conceitos universais. Como discutido acima, A mente de Deus inclui o conhecimento de tudo o que é, seja universal ou particular, bem como de tudo o que poderia ser e tudo o que deveria ser. Terceiro, as Ideias são princípios impessoais e últimos. Contudo, estou tratando da mente de Deus. Ela é uma realidade pessoal: é o próprio Deus, em seu conhecimento. Quarto, enquanto a mente de Deus é a origem extraempírica da verdade (e dessa forma é semelhante às Ideias), não há razão para o cristão depreciar o conhecimento empírico, como Platão fez. Seres humanos encontram a mente de Deus por meio da realidade empírica, bem como por meio da razão e das Escrituras, tudo mediado pelo Espírito de Deus. Assim, a criação é um meio primário, por meio do qual alguém vem a conhecer a mente de Deus.
  2. A possibilidade de conhecer as coisas como elas realmente são é atualmente contestada (isso sem nem mencionar a possibilidade de conhecer a mente de Deus!); primeiramente, por aqueles que acreditam que o conhecimento absoluto é impossível (ceticismo); e em segundo lugar, por aqueles que foram influenciados por Kant (o que inclui a maior parte dos pensadores ocidentais). Kant (1781/1965) acreditava que os seres humanos nunca poderiam conhecer alguma coisa como ela verdadeiramente é; poderiam conhecer apenas como tais coisas parecem a eles, de acordo com as categorias de pensamento que projetam sobre o mundo. Kant não negava que havia um mundo real; ele simplesmente negava quer os seres humanos pudessem ter certeza de que conheciam como o mundo realmente Mas tal posição coloca um problema interessante para o cristão: se Kant está correto, então as pessoas não podem ter certeza de nada em que acreditam, inclusive do conhecimento de Deus.

Recentemente, alguns cristãos têm seguido uma conduta diferente, tentando fornecer uma descrição das crenças verdadeiras como conhecimento que resulta da atividade de mecanismos confiáveis de produção de crenças (Alston, 1991; Plantinga, 1993). Plantinga (1983) defendeu que, da totalidade de crenças que alguém possui, algumas são “básicas”, isto é, elas são assumidas no sistema de pensamento e não podem ser provadas como verdadeiras de forma satisfazível a todos, como é o caso, por exemplo, de uma crença na existência de Deus. Nem todos vão concordar a respeito da veracidade dessa crença; entretanto, o cristão pode sustentá-la, dado tudo o que ele sabe ser verdadeiro. Dentre as coisas que o cristão sabe serem verdadeiras estão o ensino das Escrituras, entendidas por intermédio do Espírito Santo, e a experiência de Deus trabalhando em sua vida. Mais recentemente, Plantinga (1993, 1994) tentou descrever como os seres humanos formam crenças verdadeiras, afirmando que eles podem assumir que seu equipamento cognitivo é, geralmente, confiável (considerando tudo o mais como sendo igual), porque ele foi projetado por Deus para o propósito de obter conhecimento sobre as coisas.

Dadas tais pressuposições cristãs, é completamente plausível que Deus conheça todas as coisas, que os seres humanos, feitos à sua imagem, possam verdadeiramente conhecer algumas dessas coisas (Plantinga, 1994) e que eles deveriam, então, esforçar-se para “duplicar” os pensamentos de Deus (Frame, 1987). Hume e Kant podem não estar satisfeitos como este conjunto de crenças, mas o cristão está avalizado a sustentá-lo.

As próprias Escrituras legitimam tal abordagem ao conhecimento, pois fornecem um profundo “caso de teste” ao conhecimento (ao menos um cristão pensaria assim!). Os autores das Escrituras adotam uma abordagem de senso comum para suas próprias reivindicações de conhecimento. Eles assumem que o que dizem sobre Deus e sobre os seres humanos vem de Deus, é verdade, e deve ser crido; é porque Deus é Senhor que isso deve ser crido. Se de fato Deus revelou coisas sobre si mesmo e sobre a natureza humana por meio de palavras de seres humanos, ditas ou escritas, então é possível obter conhecimento sobre Deus e sobre os seres humanos na Bíblia; e, por analogia, se conhecimento verdadeiro é acessível em um livro (embora um livro muito especial), é acessível em outros lugares. Acreditar que a Bíblia tem verdades acessíveis, é legitimar indiretamente outras fontes de informação sobre o mundo de Deus.

Kantianos contemporâneos podem argumentar que postular uma mente de Deus é completamente inútil para a epistemologia, porque mesmo se houvesse uma mente assim, seres humanos nunca teriam qualquer garantia de que eles poderiam se harmonizar com ela; postular uma mente de Deus não daria às pessoas nenhuma coisa, exceto, talvez, uma autoconfiança injustificada. No entanto, essa crítica é significativa apenas em um universo kantiano. O cristão assume Deus por princípio. É apropriado para cristãos assumir que a mente de Deus é a fonte de toda verdade porque esse é o caso real, dada toda evidência que os cristãos têm à sua disposição. Só porque um kantiano não acha isso convincente não é razão suficiente para que um cristão evite acreditar no ideal epistemológico da mente de Deus.

  1. Portanto, enquanto cristãos em todas as disciplinas são convidados a levar cativos todos pensamentos, para torná-los obedientes a Cristo (2 Coríntios 10:5), o vislumbre de uma matemática distintamente cristã é muito menos evidente do que aquele nas ciências humanas, e obviamente, na religião.
  2. O’Donovan (1986) afirma que a ordem criacional, distorcida pela queda, é reivindicada e mais completamente efetuada pela redenção. A graça criacional é, então, necessariamente subordinada e cumprida na graça redentora, ambas se originando da boa vontade de Deus.
  3. É claro que isso também significa que a teologia não pode ser produzida em um vácuo, seja experiencial ou criacional. Quanto mais a palavra de Deus nas Escrituras é afastada da palavra de Deus na criação, menos ela parece relevante para a vida.
  4. Isso não é o mesmo que equiparar a autorrealização a um narcisismo Que exista diferença qualitativa entre os dois processos é mais do que evidente. Porém, tanto a visão de Maslow sobre a maturidade humana quanto as pessoas que ele selecionou como exemplares excluem a possibilidade de que muçulmanos ortodoxos, judeus ou evangélicos sejam vistos como autorrealizáveis. Também parece fora de questão que o conceito de Maslow seja tanto uma expressão quanto uma documentação do individualismo americano do século XX.

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Eric L. Johnson é professor de Aconselhamento Pastoral no departamento Lawrence e Charlotte Hoover do Seminário Teológico Batista do Sul. Ele também é diretor da Sociedade para Psicologia Cristã e editor associado da Revista de Psicologia e Teologia. Johnson estudou no Seminário Batista de Toronto, no Calvin College e na Michigan State University e lecionou anteriormente no Northwestern College, em Minnesota.


Série “Diálogo & Antítese: textos fundamentais em religião e ciências humanas”

A Série “Diálogo & Antítese: textos fundamentais em religião e ciências humanas” é uma iniciativa da ABC2-H, o grupo de Humanidades da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Com o propósito de iluminar o papel da fé na compreensão científica do ser humano e de fomentar a mútua fertilização entre a fé Cristã e as humanidades, a série será composta de textos teóricos introdutórios e artigos clássicos selecionados sobre as questões centrais do diálogo contemporâneo. A série é recomendada para discussões metodológicas em teologia, filosofia e humanidades, bem como para grupos de leitura em religião e ciências humanas. Ela será publicada inicialmente no site da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência – www.cristaosnaciencia.org.br. Informações e dúvidas, envie e-mail para contato@cristaosnaciencia.org.br.

Editores: Guilherme de Carvalho, Marcelo Cabral e Pedro Dulci

Dados da publicação: Novembro/2018


Leia aqui todos os artigos da série.

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