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Texto por Luã Mendes

 

O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal (Gênesis 6.5, NVI)

  1. INTRODUÇÃO 

O versículo acima é de grande valia para as questões que serão abordadas adiante, mas antes precisamos compreender um termo no texto citado. O capítulo 6 do livro de Gênesis marca uma escalada do pecado humano iniciado no Éden. O contexto é de pura anarquia, violência e depravação, o que leva ao cataclisma pelo dilúvio. 

O termo que precisamos compreender é “coração”. Na ótica hebraica, o coração não é meramente o órgão responsável por bombear o sangue pelo corpo. Seu sentido vai muito além, mas não há palavra em nossa língua que dê conta de esclarecer em definitivo o seu sentido. Em hebraico, o termo traduzido como coração em Gn 6.5 é lebh (ou lebhabh) e significa, segundo Jonas Madureira (2017, p. 219) a “centralidade do pensamento, dos sentimentos, da vontade e da decisão humanos. Em suma, coração é o centro do nosso mundo interior”. Nesse sentido, a perspectiva hebraica é bastante diferente da grega, pois esta interpreta o coração apenas como sinônimo de intelecto ou pensamento. Porém, “a antropologia bíblica não pressupõe que o coração seja o intelecto, mas, sim, que o coração seja o centro de tudo o que o homem é. Isso vale também para o intelecto (MADUREIRA, 2017). 

Diante disso, percebe-se que o versículo ao afirmar que “toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal” quer dizer que o intelecto, os sentimentos e as vontades do homem voltam-se para a corrupção. Podemos até dizer que o homem está em desequilíbrio, pendendo sempre entre extremos, e, no que tange ao intelecto, esses extremos são o fideísmo e o cientificismo. Entenderemos esses conceitos e as consequências negativas de cada um por meio da análise de alguns casos concretos. 

 

  1. FIDEÍSMO E CIENTIFICISMO 

Quando se trata de conhecimento ou intelecto, existem duas posições que nós, enquanto cristãos, devemos evitar: o fideísmo e o cientificismo.

I. Fideísmo: Essa palavra vem do latim fide e significa, simplesmente, “fé”. Segundo Plantinga (1983, p. 87) um fideísta é aquele indivíduo que deposita confiança absoluta na fé a despeito da razão, em questões filosóficas e religiosas, e, dessa forma, pode vir a desprezar a razão. Entretanto, Plantinga distingue dois tipos de fideísmo, o fideísmo moderado, segundo o qual devemos confiar mais na fé do que na razão em assuntos religiosos, e fideísmo extremo, que despreza e denigre a razão.

O fideísmo tratado aqui é o extremo, que poderia ser melhor traduzido como anti-intelectualismo por parte de muitos cristãos. Em muitas igrejas não é incomum ouvirmos frases como “a letra mata” com o propósito de desprezar o estudo teológico mais aprofundado. Segundo Jonas Madureira um fideísta poderia ser comparado a um balão, pois está sempre focado em subir aos céus da fé, mas despreza a realidade terrena que o cerca. 

II. Cientificismo: Para compreendermos o cientificismo, precisamos situar o período em que ele surge, isto é, no contexto do positivismo do século XIX. O positivismo foi uma corrente filosófica criada pelo francês Augusto Comte a partir do entusiasmo gerado pelo desenvolvimento científico, econômico, tecnológico e industrial que imperava na Europa da segunda metade do século XIX. A origem do termo vem do latim positum e “refere-se àquilo que está posto, situado, que existe na realidade, referindo-se, portanto, a tudo o que pode ser observado e experimentado” (no sentido de experimentação científica por meio de observação e testagem). Dessa forma, tal corrente filosófica tem como principais características 1) a excessiva valorização das ciências e dos métodos científicos e a desvalorização de conhecimentos não experimentáveis como o mítico ou o religioso; 2) a exaltação do homem e suas capacidades e 3) o otimismo em relação ao desenvolvimento e progresso da humanidade. 

O cientificismo, portanto, é a exaltação da ciência e de seu método como a única forma de compreender a realidade e mais, é a crença infundada de que a ciência pode e deve conhecer tudo (CHAUÍ, p. 357). No contexto do entusiasmo positivista do século XIX, acreditava-se que a ciência poderia responder a todas as questões e resolver todos os problemas da humanidade. Em outras palavras, o cientificismo é crença ou fé absoluta na ciência. A ciência torna-se um novo dogma. 

O triunfalismo com que a ciência era tratada acabou por gerar uma espécie de dogmatismo científico – gradativamente, a visão cientificista do mundo arrogou para si a responsabilidade de formar um novo discurso sobre a natureza, a vida e o universo (NOVAES, 2008, p. 11). 

Dessa forma, se o fideísta pode ser comparado a um balão, pois está sempre com a cabeça “no alto” e despreza a razão e o estudo, o cientificista pode ser comparado a uma toupeira, pois está sempre “cavando na terra” e despreza qualquer aspecto além da explicação científica, acreditando que esta pode levar ao fim de todo os problemas e questionamentos humanos. 

  1. CONSEQUÊNCIAS

I. Fideísmo 

A posição fideísta é equivocada pelo simples fato de que ela toma um elemento da criação de Deus (a razão humana) e a demoniza. Parafraseando Chesterton, a idolatria não ocorre apenas quando criamos falsos deuses, mas também quando criamos falsos demônios. Todavia, importa salientar que apesar de não ser saudável um cristão adotar uma postura fideísta, não podemos esquecer que o pecado afetou todos os aspectos da existência, inclusive a nossa razão. Dessa forma, é fato que existem coisas que estão acima da razão humana e nas quais simplesmente cremos, como a Trindade ou a dupla natureza de Cristo, de modo que toda tentativa de compreender racionalmente essas realidades consequentemente levam ao erro. 

Nessa esteira, talvez a maior consequência do fideísmo extremo seja a credulidade em falsos ensinos. Para fins práticos, quero falar especialmente da relação do fideísta com o estudo teológico. Cristãos que desprezam a razão, geralmente, utilizam-se de textos fora do contexto como 1 Co 8.1 (“O conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica”) ou 2 Co 3.6 (“a letra mata, mas o Espírito vivifica”) para fugirem de questionamentos e dúvidas teológicas legítimas. A ideia é que “apenas ler a bíblia” é suficiente, no sentido de que qualquer outro instrumento externo como comentários bíblicos, manuais de teologia sistemática e afins não devem ser levados em consideração. Geralmente são esses irmãos os mais facilmente cooptados por teologias viciadas como a da prosperidade, a teologia do coach etc. 

Além disso, a ironia se dá pelo fato de que a Bíblia que temos em mãos não surgiu do nada. Foi necessário um grande esforço intelectual de milhares de pessoas ao longo dos séculos para termos o Livro Sagrado. Indivíduos dos mais diversos países estudaram hebraico, aramaico, grego, latim, arqueologia, história, geologia e outras diversas disciplinas para facilitar o acesso à Bíblia pelo mundo. Portanto, soa contraditório o desprezo pelo conhecimento por parte do fideísta quando a facilidade de ler o texto bíblico em português é fruto do esforço intelectual de outros. 

O pastor batista Luiz Sayão, uma das maiores autoridades em hebraico e cultura judaica no Brasil afirma que “sem conhecimento de filosofia, história, línguas originais, exegese e teologia propriamente dita não é possível fazer teologia de verdade. É preciso aproximar a igreja da teologia: nosso povo precisa pensar mais.” 

II. Cientificismo 

Em seu livro “Visões e ilusões políticas”, o cientista político canadense David T. Koyzis afirma que as ideologias são formas de idolatria pois se fundamentam no ato de isolar um elemento criado por Deus, elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em torno desse elemento e o sirva. Por exemplo, o marxismo apropria-se de uma causa legítima que é a luta contra a desigualdade e torna ela o fim último de todas as coisas. Ou seja, o Progresso torna-se Deus. 

Da mesma forma, o cientificismo é uma forma de idolatria à medida em que enxerga a ciência como passível de resolver e responder todas as questões humanas. 

Nessa esteira, segundo Chauí (2007, p. 3) o ideal cientificista produz tanto uma ideologia quanto uma mitologia da ciência. 

Ideologia da ciência: crença no progresso e na evolução dos conhecimentos que, um dia, explicarão totalmente a realidade e permitirão manipulá-la tecnicamente, sem limites para a ação humana. 

Mitologia da ciência: crença na ciência como se fosse magia e poderio ilimitado sobre as coisas e os homens, dando-lhe o lugar que muitos costumam dar às religiões, isto é, um conjunto doutrinário de verdades intemporais, absolutas e inquestionáveis. 

Todavia, o que poderia ocorrer quando a ciência se torna um deus? Para compreendermos isso, devemos voltar ao século XIX no contexto positivista/cientificista. 

A sociedade europeia do citado século poderia ser descrita como “entusiasmada”. Primeiro, foi o período da Segunda Revolução Industrial, marcada pelo surgimento da energia elétrica, do petróleo, do trem e do navio a vapor etc. Esses fatores permitiram o aumento e a aceleração da produção industrial, produzindo, consequentemente, riqueza e desenvolvimento como nunca visto na história humana. Dessa forma, “a utilização da ciência, em favor do crescimento econômico, ia aos poucos construindo uma euforia e uma crença de que a ciência seria capaz de dar todas as respostas e de solucionar todos os problemas” (MOURA, p. w). 

Nessa esteira, as bases do cristianismo que vinham sendo atacadas desde o Iluminismo no século XVII ruíram de vez na Europa, uma vez que a crença na ciência virou a regra. 

Porém, a necessidade de matérias-primas para garantir a continuidade da produção industrial levou diversos países europeus a invadirem e massacrarem povos da África e da Ásia tendo em vista extraírem os recursos dessas terras. Nesse contexto, Charles Darwin publicava, em 1859, sua obra “A origem das espécies”. A teoria darwinista tinha pretensões de explicar aspectos das ciências biológicas somente, porém, a teoria foi tomada e aplica às sociedades, tendo em vista justificar a invasão dos países europeus aos países africanos e asiáticos, baseando-se na ideia de que eles (os europeus) eram a raça que haviam alcançado o topo da cadeia evolutiva. A essa aplicação da teoria de Darwin às relações entre sociedades nós chamamos “darwinismo social”. 

O darwinismo social, nascido no âmbito do cientificismo, entendendo que existem humanos mais evoluídos que outros, esteve na base do racismo, da eugenia e do nazismo. A eugenia nazista foi um projeto de “eliminar da sociedade qualquer tipo de pessoa que apresentasse alguma deficiência mental ou física, bem como aperfeiçoar, geneticamente, uma geração perfeita de homens e mulheres, adequados à raça ariana” (FERNANDES). 

Porém, a euforia da sociedade europeia que tornou a ciência o seu deus só durou até o início do século XX. Primero, porque o Titanic afundou em 1912. “O que isso tem a ver?”, você pergunta. “Tudo”, eu respondo. O maior navio do mundo à época não era apenas uma embarcação, era um símbolo. Simbolizava a capacidade ilimitada da ciência de criar algo que jamais afundaria. Dessa forma, quando a “maior embarcação” do mundo vai à pique, ocorre um primeiro sinal de que a ciência não tem esse poder de resolver todas as questões humanas e tornar o mundo perfeito. Logo em seguida, ocorre a Primeira Guerra Mundial em 1917, a qual deixa milhões de mortos e uma geração imersa em depressão, chamada “Geração Perdida”. Em seguida, ocorre a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, levando a uma crise econômica mundial e a inúmeros suicídios. Por fim, ocorre a Segunda Guerra Mundial, com um número de mortos nunca visto na história das guerras, e, assim, findou a euforia. 

O que devemos compreender a partir de tudo isso é que a ciência tem e deve ter limitações. Ela explica como o corpo do ser humano funciona, mas não explica o que é o homem ou qual o sentido da vida, por exemplo. Essas questões são próprias da religião, da filosofia, da antropologia etc., de modo que toda tentativa de expandir a ciência para além de sua esfera de autoridade leva a problemas. 

 

  1. INTELIGÊNCIA HUMILHADA 

Diante de tudo o que foi exposto, qual é a alternativa para não pendermos para os extremos do fideísmo e do cientificismo? Qual deve ser a nossa postura enquanto cristãos? 

Penso que o filósofo e teólogo Jonas Madureira pode nos oferecer uma resposta. A partir do estudo de cinco grandes pensadores (Agostinho de Hipona, Anselmo de Cantuária, João Calvino, Blaise Pascal e Herman Dooyeweerd) ele cunha o conceito de “Inteligência Humilhada”. Jonas percebeu no estudo da vida e da obra desses intelectuais cristãos que ao mesmo tempo em que eles tinham uma fé viva em Deus, todos direcionavam sua atividade intelectual para a glória do Senhor e expansão do Reino. Ou seja, eram ao mesmo tempo crentes e inteligentes. 

Nossa inteligência é humilhada porque o conhecimento mais elevado, isto é, o conhecimento de Deus, só é obtido porque ele mesmo se revelou a nós. A compreensão de que só sabemos quem Deus é porque ele nos deu sua revelação especial nos humilha e nos leva à humildade espiritual e, consequentemente, intelectual. 

Dessa forma, não precisamos ser fideístas pois Deus nos deu a razão para usarmos e compreendermos sua revelação tanto na natureza quanto na Palavra. Segundo Madureira, “a inteligência humilhada é a fé que não tem medo de pensar, duvidar ou questionar. A fé não precisa morrer, só precisa pensar. Uma fé assim percebe a racionalidade e a ordem divina nas coisas criadas sem, de forma alguma, anular-se ou destruir-se.

Ao mesmo tempo, não podemos ser cientificistas porque estaríamos colocando no lugar de Deus algo que não é Deus. Além disso, existem aspectos além da nossa compreensão, fatores que somente alguém que teve os olhos da fé abertos pelo Espírito pode compreender (a noção de pecado, por exemplo). Nesse sentido, uma passagem apropriada é a do Ato I, Cena V de Hamlet, obra de William Shakespeare. Ao avistarem o fantasma do pai de Hamlet, Horácio, um intelectual e amigo de Hamlet afirma “Isso é estranho”, ao que Hamlet responde “Há muito mais coisa no céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa pobre filosofia”. Hamlet não está desprezando a razão, mas entende que há coisas além dela. Segundo Madureira, “a inteligência humilhada é também a consciência da humilhação da razão que nos faz reconhecer o papel fundamental da fé. A razão não precisa morrer, só precisa dobrar os joelhos. A razão que se sujeita a Deus não deve se envergonhar da sua sujeição, nem se inferiorizar pelo fato de reconhecer sua dependência da revelação. Pelo contrário, a razão, consciente da sua miséria, deveria ser grata pela dádiva da revelação, pois, como aprendemos com nossas mães, quando alguém nos dá um presente, a única reação adequada é a gratidão. É possível ser inteligente e, ao mesmo tempo, piedoso.” 

 

  1. CONCLUSÃO: NEM BALÃO E NEM TOUPEIRA 

No início comparei o fideísta a um balão, pois está sempre com a mente “nas nuvens” da fé e o cientificista a uma toupeira, pois está sempre com os pés “na terra” da razão. Jonas entende que o cristão que reconhece a sua inteligência humilhada, que cultiva tanto a fé como a razão, utilizando ambas para a glória de Deus, não é nem balão e nem toupeira, e utiliza-se de uma frase de Chesterton com a qual eu quero concluir: 

O homem não é um balão que sobe ao céu nem uma toupeira que vive unicamente cavando na terra, mas antes, algo semelhante a uma árvore, cujas raízes se alimentam da terra enquanto os ramos mais altos parecem subir quase até às estrelas.

 

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Referências: 

Allan Macedo de Novaes (2008). Imprensa e cientificismo: uma reflexão sobre a imagem da ciência construída pelo discurso jornalístico. Acta Científica. Ciências Humanas, 1 (14), 9-19. Disponível em: https://revistas.unasp.edu.br/acch/article/view/43 4. Acesso em: 23 mai. 2022.

Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff. Faith and Rationality: Reason and Belief in God (Notre Dame University of Notre Dame Press), p. 87. Coleção Estudos. Disponível em: https://docero.com.br/doc/5x1e0nc. Acesso em: 23 mai. 2022.

Cláudio Fernandes. Eugenia nazista. História do Mundo, [s.d.]. Disponível em: https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/eugenia-nazista.htm. Acesso em: 23 mai. 2022.

David T. Koyzis. Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas (São Paulo: Vida Nova, 2014).

FILOSOFIA. [S.1]: Bernoulli, [20–1. V. 7. https://docero.com.br/doc/5x1e0nc. Acesso em: 23 mai. 2022. 

Jonas Madureira. Inteligência Humilhada (São Paulo: Vida Nova, 2017).

Solange Ferreira de Moura [organizador]. Livro didático de Fundamentos das Ciências Sociais. 1° Edição (Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2013), p. 78. 

Luiz Alberto Sayão. Agora sim!: teologia na prática do começo ao fim (São Paulo: Hagnos, 2014). p. 19. 

Marilena Chauí. Convite à filosofia (São Paulo: Editora Ática, 2000).

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