por Jonathan A. Moo em 22 de abril de 2020
Ao final do outono, em uma floresta em algum lugar do sudeste asiático, um fogo é aceso na base de uma árvore. Nessa árvore está escondido um pangolim. Pangolins são pequenos mamíferos cobertos de escamas, com focinhos longos, comedores de formigas. São representantes únicos de sua ordem (Pholidota). São animais cada vez mais raros e a sua venda é proibida. Mas a sua carne é saborosa e suas escamas são consideradas valiosas para a medicina tradicional. A pobre família do caçador hipotético desse pangolim pode ter a provisão de semanas, graças ao dinheiro recebido pela captura desse pangolim, que foi sacado da árvore pela fumaça provocada. A árvore então é derrubada, o pangolim é capturado e a venda é concluída.
Meses mais tarde, entre as consequências desse evento que normalmente não seria digno de nota, estão as mortes de mais de cem mil pessoas (na data em que escrevo), o adoecimento de milhões e o desgaste das economias mundiais até paralização completa.
Para ser mais preciso, os cientistas ainda não sabem a origem do vírus que causa a COVID-19. As primeiras evidências apontavam para os morcegos como a fonte e os pangolins como potenciais portadores intermediários, e o vírus teria saltado para os seres humanos em um mercado na cidade de Wuhan, China. Dessa forma, o cenário descrito anteriormente é provável, mas incerto. De qualquer forma, qualquer que seja precisamente a cadeia de transmissão, a pandemia é um lembrete esplêndido de quão interconectada é a nossa Terra e quão entrelaçada está a vida humana com o mundo natural. Ela também nos alerta sobre as consequências de ignorar o que a ciência nos diz sobre os riscos trazidos pelas nossas escolhas de como se relacionar com a criação de Deus.
Cinquenta anos atrás, em 22 de abril de 1970, praticamente 20 milhões de pessoas nos Estados Unidos participaram do primeiro Dia da Terra. Até 1990, esse evento anual de celebração, protesto e ativismo já havia se tornado global e hoje estima-se que um bilhão de pessoas participam, tornando-o o maior evento secular cívico do mundo. No Dia da Terra as pessoas reconhecem que nós, como seres humanos, estamos entrelaçados com o mundo natural e que nós, coletivamente, temos uma habilidade imensurável de impactar a Terra e as suas criaturas e em troca, experimentar os efeitos desse impacto. Até mesmo o potencial da COVID-19 de impactar a vida humana está diretamente relacionado ao modo como construímos as nossas cidades, obtemos nosso alimento, desmatamos as nossas florestas e fazemos uso de outras criaturas, cujos habitats estão ficando cada vez menores e mais fragmentados. As diferenças na taxa de mortalidade deixam dolorosamente claro que a exposição à poluição diminui a habilidade de muitas pessoas de sobreviverem a um vírus como esse. Ainda assim, hoje a civilização humana e a saúde da Terra enfrentam ameaças muito mais graves do que a maioria das pessoas que protestaram em 1970 poderiam ter antecipado. Ameaças que intimidam até mesmo os impactos da COVID-19.
Alguns sucessos notáveis ocorreram desde o primeiro Dia da Terra. Quando eu olho para o céu azul infinito e respiro ar puro e despoluído, sou grato àqueles que aprovaram a Lei do Ar Limpo (também em 1970, não por acaso no mesmo ano do primeiro Dia da Terra). Quando passeio embaixo de uma Pinus ponderosa e um abeto de Douglas (N.T.: pinheiros nativos do hemisfério norte) em uma floresta perto da minha casa em Spokane, Washington, eu louvo a Deus pela antevisão daqueles que demarcaram lugares como esse para o florescimento de outras vidas e para a saúde de cidadãos urbanos como eu. E a águia-de-cabeça-branca que eu vi há algumas horas, planando sobre o meu bairro, testifica a importante recuperação de uma espécie que já esteve à beira da extinção. Mas as bênçãos que eu herdei como resultado do trabalho de cientistas diligentes, ativistas fiéis e líderes sábios do passado não são desfrutadas por um grande número de pessoas ao redor do mundo; e todos os ganhos das décadas passadas estão sob ameaça sem precedentes.
Bilhões de irmãs e irmãos ao redor do mundo, quase sempre os mais pobres e impotentes, sofrem diariamente os resultados do nosso fracasso coletivo na tentativa de adotar meios justos e sustentáveis de produzir o nosso alimento, gerar a nossa energia e fabricar os nossos bens – meios que já estão disponíveis, mas que com muita frequência nós negligenciamos por preguiça, ganância e falta de imaginação. Praticamente todos os ganhos dos últimos 50 anos – e mais do que isso, a própria possibilidade de florescimento da nossa Terra ricamente diversa e fértil – estão sob o risco de serem perdidos como consequência da nossa falha em cuidar da saúde da criação e em confrontar a ameaça da mudança climática. Esses são os maiores desafios do nosso século. Mesmo assim, são os desafios que os cristãos insistem em enfrentar de maneira mais comedida.
Na verdade, os cristãos são os que têm mais motivos do que qualquer outro para se envolverem no Dia da Terra. Jesus nos chama a amar a Deus e ao próximo. Amar a Deus inclui estimar o que Deus fez e cuidar bem de uma criação sobre a qual nos foi dada muita responsabilidade. Amar o nosso próximo inclui assegurar a saúde da Terra e dos ecossistemas dos quais eles e nós fazemos parte e dos quais todos nós dependemos. Como, então, podem os cristãos considerar o Dia da Terra mais adequadamente? Aqui eu apresento três sugestões derivadas da tradição cristã e da própria Escritura: celebração, lamento e ativismo.
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Celebração
Alguns cristãos têm o receio de personificar a criação como “Terra”, com medo que isso possa levar à deificação e adoração da criação em vez do Criador. Ainda assim, é chocante a frequência com que os autores bíblicos personificam a Terra e suas criaturas. Eles consideram que a Terra tem a sua própria integridade, sua própria agência, sua própria voz. A criação não-humana dá testemunho da glória de Deus. A Terra clama contra a injustiça e pranteia sob o peso do pecado humano. Sobretudo, a criação louva e adora a Deus – simplesmente ao ser o que foi criada para ser. A Terra e as suas criaturas existem, em primeiro lugar, não para nos servir, mas para Deus e para a glória de Deus em Cristo. Portanto, a nossa celebração no Dia da Terra pode começar pelo reconhecimento do presente que é essa boa criação, que Deus não só fez, mas valoriza. As Escrituras consideram a criação, em sua totalidade, como uma coisa boa e digna de celebração (leia o Salmo 104 para ver um exemplo). A nossa resposta a esse presente não deve ser adorar a Terra, mas dar assistência ao seu testemunho sobre Deus, atender às suas advertências, cuidar de suas criaturas e acima de tudo, participar da sua adoração ao Criador – assim como descrevem tão vividamente textos como Salmo 148 e Apocalipse 4-5.
Nós celebramos a maravilha de um mundo que somos convidados a explorar e estudar, mas que, não importa o quanto nós aprendamos, continua sendo um milagre, algo que em última instâncianos transcende e nos aponta na direção do Deus transcendente. Convenientemente, o Dia da Terra vem logo depois da Páscoa. A Páscoa nos convida a adentrarmos a nova vida que Deus nos dá em Cristo e nos prepara para ver, renovados, esse mundo como o palco da glória de Deus. Somos libertos para celebrar o quanto a criação é boa e resiliente, de tal maneira que mesmo gemendo sob a sujeição ao pecado humano, ainda assim revela a glória de Deus e tem um futuro nos propósitos divinos. Mesmo que soframos, mesmo que lamentemos, mesmo que clamemos por um mundo melhor que um dia há de refletir com mais perfeição os propósitos divinos, esse mundo ainda é o mundo bom que Deus criou. Portanto, tornemo-nos entusiastas da história natural e aprendamos algo novo sobre a ecologia da nossa própria casa. Vejamos com novos olhos a maravilha do mundo ao nosso redor. Não desprezemos o presente divino dessa maravilhosa criação, antes, vamos celebrá-la e aprender como unir as nossas vozes a esse coral cósmico que louva incessantemente ao nosso Criador e Redentor.
“O Dia da Terra proporciona aos cristãos a oportunidade de serem proclamadores da verdade, de olhar com sobriedade o que a ciência revela sobre a saúde da criação e de reconhecer a realidade de um mundo que está longe de ser perfeito.” – Jonathan Moo
Lamento
Os cristãos são capazes de celebrar e experimentar alegria na criação, não apenas por ela ser persistentemente boa, mas também pela nossa esperança de que, em Cristo, todas as coisas serão renovadas. Mesmo assim, a verdadeira esperança cristã só pode ser conhecida lado a lado e através do lamento. O Dia da Terra proporciona aos cristãos a oportunidade de serem proclamadores da verdade, de olhar com sobriedade o que a ciência revela sobre a saúde da criação e de reconhecer a realidade de um mundo que está longe de ser perfeito. É uma oportunidade de refletir sobre como o nosso relacionamento rompido com Deus resulta em um rompimento dos nossos relacionamentos uns com os outros e com a Terra também. Precisamos abrir espaço em nossas vidas e nas nossas igrejas para gemer junto com os gemidos da criação, para prantear o que foi perdido, para discernir o que foi destruído, para clamar contra a injustiça e para nos preparar para sermos desafiados e transformados.
Infelizmente, há muito o que lamentar. Considere alguns exemplos que mostram a magnitude das mudanças operadas no nosso mundo, até mesmo logo após o primeiro Dia da Terra em 1970 (período em que a Terra, obviamente, já havia sofrido mudanças sem precedentes na história humana). Como seres chamados a dominar e cuidar das outras criaturas, considerem que as populações animais ao redor do mundo são agora menos da metade do que eram naquela época: a abundância de outros vertebrados reduziu em mais de 60% desde 1970, graças à destruição de habitat, desmatamento de terras para uso humano, degradação de oceanos e exploração descontrolada de animais e peixes. Também estamos causando a extinção de espécies inteiras, em um ritmo aproximadamente 1000 vezes maior do que ocorreria sem a gente.
Mudamos radicalmente a própria atmosfera do nosso planeta propício para a sustentação da vida. Desde 1970, nós aumentamos a concentração de dióxido de carbono na atmosfera de 325 partes por milhão em 1970 para 407 partes por milhão no Dia da Terra em 2020, maior do que tem sido em milhões de anos. A grande maioria dos gases estufa começaram a ser emitidos nas últimas décadas e desde 1970, só as emissões de dióxido de carbono aumentaram em 90%. Os efeitos mais graves disso no clima da Terra já eram conhecidos bem antes de 1970 e agora estão começando a ser experimentados ao redor do mundo. Isso irá mudar a vida para todos nós e já está ameaçando a capacidade dos ecossistemas e da civilização humana de se adaptar. As consequências, se nós não agirmos conjuntamente para reverter essas tendências, serão muito mais graves e duradouras do que as consequências que agora experimentamos como resultado da nossa falta de atenção ao que os cientistas já têm nos advertido há anos sobre o risco de pandemias como a COVID-19.
Ativismo
Na celebração e no lamento, inspirados pela esperança, podemos descobrir, pela graça de Deus, a necessidade que temos de agir. A ciência não pode nos dizer o que fazer. Ela só nos dá os dados que precisamos para tomar decisões fundamentadas. Como cristãos, nós nos voltamos para as Escrituras para aprender sobre quem somos chamados a ser no tempo e lugar em que vivemos. Com princípios fundamentados na Bíblia e informados pelo que a ciência revela sobre o nosso mundo, nós podemos ponderar a ética das decisões que precisamos tomar sobre a maneira como organizamos nossas vidas e sobre como cuidamos, ao mesmo tempo, das pessoas e da criação não-humana. Sempre que os cristãos foram fiéis, eles sempre sustentaram uma visão do desenvolvimento humano que não depende do materialismo, riquezas, poder, ou qualquer outra ideologia política ou econômica. Precisamos estar bem posicionados para defender as mudanças, acusar as injustiças, lutar pela verdade e paz e crer na possibilidade de transformação e renovação.
Acima de tudo, nós confiamos que Deus, em Cristo, irá cumprir tudo o que Ele prometeu – efetuar a transformação que é possível pelo poder do Espírito Santo. Portanto, nós somos realistas e humildes a respeito das nossas habilidades, nossa sabedoria e a nossa visão limitada. Ainda assim, somos chamados ao amor, amor a Deus e ao próximo, e a um amor que age corajosamente aqui e agora. Com os corações transformados pelo Espírito de Deus e o exemplo de Cristo diante de nós, mais do que qualquer pessoa, os cristãos devem ser aqueles que no Dia da Terra estão dispostos a agir em favor dos pobres e impotentes, desafiar os poderes vigentes, entregar as nossas vidas e renunciar nossas convenções confortáveis, sobre como o poder, o dinheiro e os negócios devem ser e incorporar a vida do Reino de Deus, na qual há abundância e florescimento de toda a vida. Como seres renovados à imagem de Deus, somos chamados a servir e proteger tudo o que nos foi confiado, vivendo como membros do Reino de Deus e “novas criaturas” em Cristo, através de quem toda a criação que geme pode agora experimentar uma amostra da liberdade e da glória que Deus promete.
Publicação original aqui.
Sobre o Autor
Jonathan A. Moo (PhD, Universidade de Cambridge) é um professor associado de Novo Testamento e estudos ambientais na Universidade Whitworth em Spokane, Washington. Além do seu trabalho em estudos bíblicos, ele recebeu o grau de bacharel em ecologia selvagem da Universidade do Estado de Utah e escreveu vários artigos e livros sobre o entendimento da natureza no Judaísmo e Cristianismo primitivos. Ele trabalhou extensivamente com o Instituto Faraday de Ciência e Religião em Cambridge (UK) e foi peça fundamental para A Consultoria Global sobre os Cuidados com a Criação e o Evangelho do Movimento Lausanne.
Leia a seguir: Criação, Evolução e Cristãos leigos, por Tim Keller: Um artigo em seis partes.