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Continuação…

O Cristianismo e a História da Tecnologia – por Michael Sacasas – tradução Fernando Pasquini
Texto original: http://thefrailestthing.com/2012/03/01/christianity-and-the-history-of-technology-longform/

 

George Ovitt: Desafiando a Tese de Lynn White

O livro de George Ovitt, “The Restoration of Perfection: Labor and Technology in Medieval Culture” (A Restauração da Perfeição: Trabalho e Tecnologia na Cultura Medieval), publicado em 1987, representa o primeiro tratamento extensivo em um livro dos temas principais propostos na tese de White. Ovitt, que em seu prefácio homenageia apropriadamente o trabalho de White, parte para explorar de forma mais completa as afirmações feitas acerca da fé e prática cristãs em relação às atitudes medievais para com a tecnologia. A análise de Ovitt também é profundamente influenciada por Max Weber e a aplicação dos insights weberianos ao monasticismo feita por Lewis Mumford. Finalmente, Ovitt também avalia avaliações alternativas, feitas por Jacques Le Goff, em 1980, sobre as atitudes medievais para com o trabalho e desenvolvimento tecnológico. Contra a tese de White, Le Goff argumentava que a mudança das atitudes teológicas para outras, em direção ao trabalho e tecnologia, foram as consequências, e não a causa das transformações das condições econômicas e materiais.

Além de avaliar estudos anteriores, Ovitt também contribui com um capítulo sobre as raízes medievais e cristãs da noção de progresso. A noção de progresso torna-se outra importante “rede” semântica que captura elementos significativos sobre a relação entre religião e tecnologia. Ovitt conclui que os escritores cristãos primitivos e seus herdeiros medievais reconheceram o progresso material e a soberania humana sobre a natureza, mas estes estavam intimamente ligados ao progresso moral e “a luta pela soberania sobre o ego, que é mais intratável”.

Em outras palavras, as noções de progresso ainda não eram, como seriam mais tarde, reduzidas ou consideradas equivalentes ao progresso técnico. Dessa forma, assim como de inúmeras outras maneiras, a igreja medieval ocidental baseou esta posição em Agostinho, cuja visão das artes mecânicas pode ser melhor descrita como ambígua.

Voltando especificamente às afirmações apresentadas por White e Benz, Ovitt busca testá-las realizando uma extensa revisão da literatura hexameral do período medieval, ou seja, comentários sobre os seis dias da criação. A revisão dessa literatura leva Ovitt a restringir substancialmente as afirmações tanto de Benz, em relação à imagem de Deus como artesão, e a sugestão de White de que a teologia cristã sancionou uma postura predatória em relação à natureza.

Ovitt acredita que, enquanto haja ampla evidência de representações de Deus como artesão na literatura hexameral da Igreja Latina, estas são equilibradas por contínuas representações de Deus como um Criador isolado e transcendente – um retrato compartilhado com a Igreja do Oriente – que aparecem com a mesma frequência que as imagens de Deus como artesão. Além disso, Ovitt sugere que, quando a imagem de Deus como artesão é empregada, estas frequentemente sugerem que, assim como os produtos finais do artesão são muitas vezes utilizados de formas contrárias às suas intenções, assim também a obra das mãos do Criador, a saber, a humanidade, muitas vezes é rebelde para com as suas intenções.

No que diz respeito à tese de White, Ovitt segue os críticos anteriores ao questionar se, por um lado, White descreve adequadamente os dados bíblicos e suas elaborações teológicas, e se, por outro lado, uma conexão tão direta e causal poderia, em qualquer situação, ser razoavelmente traçada entre uma perspectiva religiosa e o consenso cultural. A pesquisa de Ovitt ainda sugere que a representação mais comum da relação da humanidade com a criação é melhor entendida como sendo uma de guarda ou mordomo, ao invés de uma exploração desenfreada. Além disso, Ovitt ressalta que a ideia de que a natureza existe para ser usada por seres humanos por si só não especifica os usos que se dão a ela. Ovitt cita e aprova a sugestão de Mumford de que foi apenas com a introdução de Francis Bacon da “‘mentalidade técnica sedenta por poder’ que o Ocidente entrou no curso auto-destrutivo que ele agora segue.”

Ademais, se olharmos para o “resultado direto da ética cristã medieval de dominação”, encontraremos “uma longa tradição de artesanato e agricultura de subsistência” – uma “politécnica democrática”, nas palavras de Mumford, ao invés de uma “megatécnica autoritária.”

A “questão realmente significativa para a história da tecnologia”, na visão de Ovitt, “não é o que o cristianismo ensina sobre a dominação da natureza, mas o que o cristianismo ensina sobre a dominação de seres humanos por outros seres humanos.”

E com isso, Ovitt passa a considerar os sistemas medievais sociais e de educação, especificamente a prática do trabalho nas ordens monásticas e do lugar das artes mecânicas nas classificações medievais de conhecimento. Relativamente à primeira, Ovitt de fato acredita que a tradição monástica, tanto em suas manifestações eremíticas como cenobíticas, confirma a dignidade fundamental e utilidade espiritual do trabalho. Além disso, Ovitt acredita que a Regra de São Bento seja a “reconciliação mais efetiva” das necessidades espirituais do indivíduo e as necessidades econômicas da comunidade. Mais importante, ele conclui que, contrariamente à lógica posterior do capitalismo, o significado do trabalho não residia em “seus produtos ou usos quantitativos de tecnologia e invenção como meios de aumentar a produtividade”; pelo contrário, este residia no “processo de trabalho” que visava a santidade pessoal e a auto-suficiência comunitária.

Ovitt conclui de forma razoável que a análise weberiana do papel do monasticismo ao incubar um capitalismo incipiente, bem como ao promover um entusiasmo peculiarmente ocidental para a tecnologia, deve ser equilibrada com o espírito da oração de Santo Agostinho – “Senhor, estou trabalhando duro neste campo, e o campo de meu trabalho sou eu mesmo “- que expressava as prioridades medievais dominantes.

Em sua pesquisa das classificações medievais do conhecimento, em especial a de Hugo de São Vitor, no século XII, e a de Tomás de Aquino, no século XIII, Ovitt encontra, em geral, uma estimativa positiva das artes mecânicas, mesmo com estas ocupando o nível mais baixo entre as várias outras artes. Mas, em sua opinião, era necessário mais do que a simples admissão delas em classificações de conhecimento de teólogos para que houvesse o particular entusiasmo para com a tecnologia que viria a distinguir a sociedade ocidental. Para isso, era necessário uma dissociação entre o “trabalho, e as ferramentas de trabalho, do reino do sagrado e do controle dos teólogos”, e um renovado interesse em julgar a tecnologia a partir seus produtos, em vez de seus efeitos sobre a vida espiritual de seus usuários.

Isto seria realizado, ironicamente, pelo movimento da Reforma Gregoriana, originário de dentro da igreja, que procurou esclarecer os papéis respectivos da igreja e do Estado. Ao fazê-lo, a Igreja sancionou uma divisão tríplice da sociedade, incluindo aqueles que governavam e lutavam, aqueles que trabalhavam, e aqueles que oravam. Esta divisão endossou tacitamente a separação do trabalho do alcance da Igreja e abriu espaço para que a tecnologia evoluísse de forma isolada às restrições ou considerações morais e espirituais. Ao contrário de White, portanto, Ovitt sugere que a principal contribuição do cristianismo na evolução das atitudes ocidentais para com tecnologia pode ter sido sua atitude de apenas sair do meio do caminho.

O estudo de Ovitt complica significativamente os argumentos históricos feitos por Benz e White, bem como o resumo anterior de Ellul acerca da relação do cristianismo com a técnica. O quadro total é, em geral, mais ambíguo do que aquilo que o trabalho desses estudiosos levaria os leitores a acreditar. As atitudes medievais para com a natureza, o trabalho e as artes mecânicas eram positivas em sua totalidade, mas ao mesmo tempo pouco entusiastas. Mais importante, Ovitt convincentemente mostrou que as considerações técnicas eram, como se poderia esperar, consistentemente subordinadas a fins espirituais, como demonstrado pela disposição dos beneditinos de deixarem o trabalho de lado quando se tornasse possível empregar uma ordem menor de irmãos leigos ou mesmo trabalhadores assalariados para executarem o trabalho necessário à comunidade. O trabalho de Ovitt ocupou seu lugar ao lado do de White como uma contribuição importante na pesquisa acadêmica sobre a relação do cristianismo medieval com a tecnologia ocidental. Se quisermos encontrar as fontes do entusiasmo ocidental para com a tecnologia, é necessário começar com o cristianismo medieval, mas depois do trabalho minucioso de Ovitt, não é mais possível terminar por lá.

Susan White: Tecnologia e Liturgia

Em 1994, a estudiosa Susan J. White publicou um estudo intitulado “Adoração Cristã e Mudança Tecnológica”. O estudo de White inverte a direção da pergunta ao inquirir não mais sobre o efeito do cristianismo na evolução da tecnologia, mas sobre as conseqüências da tecnologia para a adoração cristã. Ao fornecer a justificativa de seu estudo, White cita os trabalhos anteriores de Ellul, Lynn White, Mumford, e Ovitt, explorando a complexa relação entre cristianismo e tecnologia. Em seu capítulo mais interessante, White discute o papel da tecnologia astronômica – o astrolábio, o albion, e o rectangulus – no aperfeiçoamento do calendário litúrgico cristão, que estava reconhecidamente desorganizado, bem como o papel do relógio mecânico em recalibrar os ritmos da liturgia.Nestes pontos, no entanto, White está apenas seguindo os trabalhos anteriores de Mumford e Lynn White. Assim, ela nota o contraste entre a rejeição de longa data do relógio mecânico pela Ortodoxia Oriental e sua rápida aceitação nas igrejas ocidentais, um ponto também registrado por Lynn White.

Em um capítulo posterior, “Liturgia e Mecanização”, White tem uma abordagem que ressoa com a articulação de Ellul acerca da técnica, observando como as transformações nas práticas litúrgicas cristãs durante os séculos XIX e XX foram muitas vezes inspiradas pelos objetivos e lógica da tecnologia de máquina. Em sua analogia, a liturgia tornou-se uma forma de tecnologia mecanicista.

O trabalho de Susan White é proveitoso devido ao seu reenquadramento da questão da tecnologia e cristianismo à luz da influência da tecnologia sobre a religião. Seu trabalho é especialmente útil para aqueles que nunca consideraram as consequências das mudanças tecnológicas sobre a prática litúrgica. Contudo, ela não avança o debate iniciado por Lynn White sobre a relação entre o cristianismo e a tecnologia ocidental. Em 1997, no entanto, a obra do historiador David F. Noble, “A Religião da Tecnologia”, levantou novamente a questão com vigor renovado.

(Continua…)

Parte final

 

 

 

 

 

 

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