Resumo
Afirmações têm sido feitas de que o mundo natural – o assunto da ciência e seus muitos métodos – é tudo que existe. Se essas alegações fossem fundamentadas, elas ameaçariam as crenças religiosas. Mas argumentos, em vez de afirmações, conquanto vocais e frequentes, são necessários. Um argumento que tem sido oferecido é o de que a constituição do mundo material pode ser exaustivamente explicada “reduzindo” seus elementos em partes sucessivamente menores até que nada reste para ser explicado. Consideramos se esta redução é útil ou é um obstáculo ao empreendimento científico, assim como consideramos a esta prática torna ou não a ciência necessariamente ateísta.
Somos simplesmente mecanismos químicos altamente complexos com computadores em nossas cabeças? Somos apenas átomos e moléculas? Os nossos pensamentos não são “nada além de um conjunto de neurônios”?¹ Certos cientistas têm feito afirmações como estas; afirmações que levam o nome geral de “reducionismo”. Uma expressão desta crença vem do falecido Francis Crick que, juntamente com James Watson e Maurice Wilkins, recebeu um prêmio Nobel por identificar a estrutura do DNA. Em seu livro, A Hipótese Espantosa [“The Astonishing Hypothesis”], Crick escreve que:
“A Hipótese Espantosa é que “Você”, suas alegrias e tristezas, suas memórias e ambições, seu senso de identidade pessoal e livre-arbítrio, são, na verdade, nada mais que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas.”²
Tal declaração parece ameaçar as crenças religiosas e Crick, certamente, mostra pouca simpatia pela religião no capítulo 12 de seu livro que é intitulado “O Culto Dominical do Dr. Crick” [Dr Crick’s Sunday Morning Service]. Ele afirma que “as crenças das religiões mais populares […] são, pelos padrões científicos, […] baseadas em evidências frágeis que apenas um ato de fé cega pode torná-las aceitáveis. […] Se as religiões reveladas revelaram qualquer coisa é o fato de que elas normalmente estão erradas.” ³ Afirmações como esta revelam uma visão, às vezes promulgada em apresentações na mídia popular, de que a “fé” é o mesmo que crença não fundada em evidências e o mesmo que credulidade. Esta caricatura é frequentemente associada a formas mais extremas de reducionismo. Para ser justo com Crick, entretanto, mais adiante em seu livro ele diminui o tom de algumas de suas declarações mais extremas, dizendo “nada em nossa hipótese pode ser enganoso se for entendida de uma maneira muito ingênua. […] A Hipótese Espantosa pode se provar correta. Alternativamente, alguma visão próxima à religiosa pode se tornar mais plausível”.4
Como contraste ao “espanto” de Crick, é apropriado citar uma fonte oposta de “espanto”, desta vez expressa pelo geneticista que rumou do ateísmo à fé, direto para sua carreira biomédica. Francis Collins, diretor do que é considerado uma das mais significativas organizações biológicas no início do século 21, o National Human Genome Institute, em Washington, descreve sua jornada pessoal à fé e, aplicando sua fé ao seu trabalho, questiona:
“Bem, o que então, nós, como cristãos, dizemos a respeito do estudo do genoma humano? Em primeiro lugar, podemos e devemos experimentar espanto com a elegância e beleza do genoma. Em segundo lugar, devemos estudar o genoma se acreditamos no mandato para curar”5.
Seja qual das duas razões que você prefira sobre o sentimento de “espanto”, há claramente uma questão teológica levantada pela afirmação reducionista de que não somos “nada além de um conjunto de neurônios”.
Reducionismo
O reducionismo adquire este nome a partir da ideia de explicar “os todos” ao reduzi-los a explicações em termos de suas partes. “Brevemente colocado”, diz Ian Barbour, “o reducionismo é tido como sendo algo que sugere que a religião envolve apenas psicologia; psicologia é basicamente biologia; biologia é a química de grandes moléculas, cujos átomos obedecem às leis da física que, em última instância explicam todas as coisas!”6 Componentes químicos como o sal comum e os desnaturantes podem ser explicados como tendo sido feitos de elementos menores, os elementos do sódio, cloro, carbono, hidrogênio e oxigênio. Os próprios elementos podem, então, ser explicados em termos de prótons, nêutrons e elétrons que os compõem, e estes, por sua vez, são explicados em termos de quarks e assim por diante. É como se estivéssemos descascando uma cebola, camada por camada.
Nada disso soa particularmente ameaçador às crenças religiosas e não é. Porém, se começarmos a descer nos níveis de explicação e então subirmos um pouco no nível das macromoléculas que constituem os nossos corpos, isto suscita a questão anterior sobre seres humanos serem ou não apenas átomos e moléculas. Um vídeo sobre nutrição estava certo com o título “Você é o Que Você Come?” Certamente não compartilhamos agora com a expectativa de Descartes de se encontrar uma “alma” localizada na glândula pineal. Além do mais, se for verdade que todo átomo e molécula em nossos corpos foi removido, não restaria nada. Assim, no sentido altamente restrito de nossa constituição física, somos átomos e moléculas. Somos:
- Água suficiente para encher dez barris;
- Gordura suficiente para produzirmos sete barras de sabão;
- Carbono para produzirmos 9.000 lápis;
- Fósforo para produzirmos 2.200 cabeças de fósforo;
- Ferro para produzirmos um prego de tamanho médio, e assim por diante. 7
Esta descrição pode nos deixar sentindo um pouco desconfortáveis. Isto é tudo que há para ser dito a respeito de nós? Uma lista de substâncias químicas que poderiam ser compradas com algumas libras? O significado da palavra “tudo” é, naturalmente, o cerne da questão.
Palavras-sirene
Os amantes sabem que há muito mais a ser dito sobre cada um deles do que pode ser expresso em uma lista de componentes químicos. Não é que a lista de componentes químicos seja errada, mas apenas inapropriada e grosseiramente inadequada para o namoro. Afirmações como “somos simplesmente mecanismos químicos altamente complexos”; “somos apenas átomos e moléculas”; “somos apenas materiais físicos” e “e não somos nada além de um conjunto de prótons, nêutrons e elétrons” são suspeitas devido à inclusão das palavras “simplesmente”, “apenas”, “somente” e “nada além de”. Estas palavras atuam como um aviso para se manter intelectualmente alerta e para observar cuidadosamente o que se segue após elas. Elas servem como “palavras-sirene”. Remova essas palavras e as declarações que as seguem são perfeitamente válidas. Assim, começa a parecer que talvez possa existir mais de um tipo de reducionismo: um que faz declarações não contenciosas sobre o que constitui nossos corpos e outro que parece ir além disso, afirmando que as descrições/explicações físicas constituem a soma total de tudo que há para ser dito. Estes dois tipos de reducionismo são comumente considerados os principais e, por razões que veremos em breve, são classificados pelos deselegantes termos de reducionismo metodológico e reducionismo ontológico (metafísico), respectivamente; termos esses que precisam ser trabalhados. Há, também, um terceiro tipo que é o reducionismo epistemológico, que eu também descreverei brevemente para ser completo.
Reducionismo metodológico
Arthur Peacocke fornece uma definição clara de reducionismo metodológico quando escreve que
“A quebra de todos ininteligíveis complexos em unidades, buscando as estruturas desses componentes e quais funções elas podem realizar, e então as encaixando da melhor maneira possível, pelo menos teoricamente, para ver como elas funcionam juntas em um todo complexo é um estratagema comum na ciência experimental que muitos cientistas praticantes dificilmente considerariam isto digno de nota.”8
A abordagem é central ao empreendimento científico e segue um longo caminho para explicar o enorme sucesso da ciência. A identificação da estrutura do DNA, já referida, é um caso particular de tal produtividade. Outro exemplo, desta vez da física, refere-se às propriedades dos gases. Caso se considere que um gás consiste em um grande conjunto de moléculas em um movimento aleatório contínuo, pode se entender que a pressão de gás surge de bombardeios contínuos dessas moléculas nas paredes do vaso de contenção. O entendimento de “nível mais alto” das propriedades dos gases é bem explicado por um entendimento das propriedades das moléculas dos gases.
Robert Boyle foi um dos membros fundadores da Royal Society em 1660 e, em seu livro, A Disquisition about the Final Causes of Natural Things [Uma Análise Sobre as Causas Finais das Coisas Naturais] (1688), ele “argumenta que o cientista, em seu trabalho diário, não precisa prestar atenção a nada exceto ao tamanho, forma, textura e movimento das partículas”. Ainda assim, um dos livros que escreveu foi The Christian Virtuoso [O Cristão Virtuoso]9, subtitulado de Shewing that, by being addicted to Experimental Philosophy [science], a man is rather assisted than indisposed to be a good Christian [Mostrando que, ao ser viciado em filosofia experimental (ciência), um homem é auxiliado e não impedido de ser um bom cristão]. Há uma diferença importante, como reconheceu Boyle10, entre o reducionismo como método e a afirmação de que a história envolvendo átomo e molécula é a única explicação válida do mundo. O reducionismo metodológico é teologicamente benigno. É uma abordagem produtiva que não apresenta ameaça à crença religiosa. Uma ajuda definitiva e não um obstáculo.
Veja também: Nada além de um monte de neurônios?
Emergência
Uma possível armadilha, entretanto, quando se está aplicando a técnica do reducionismo metodológico é que, ao se concentrar nas partes componentes, dá-se atenção insuficiente à maneira como as partes são dispostas. A organização dos componentes é muito importante. Novas propriedades podem emergir no todo por conta da maneira como as partes são dispostas; propriedades que não são possuídas pelas partes tomadas isoladamente. Informações significativas podem ser perdidas se um sistema é apenas inspecionado no nível analítico. O nível sintético também precisa ser considerado. Por exemplo, um elétron e um próton se juntam para formar algo novo: um átomo de hidrogênio. Com um grande número de moléculas de hidrogênio, uma nova propriedade, “gasosa”, emerge; uma propriedade de conjuntos, uma propriedade coligativa. O mesmo se aplica para o oxigênio, mas com uma combinação distinta de componentes.
Um exemplo químico é o de se combinar os gases de oxigênio e hidrogênio a um composto, a água. Dessa combinação química dos dois elementos gasosos, emerge uma nova propriedade (umidade) que os próprios gases de oxigênio ou hidrogênio não possuem. Além disso, outra propriedade (a propriedade de ser gasosa) se perdeu no processo.
Outro exemplo de emergência, um exemplo que nos aproxima do relacionamento da ciência e da teologia, vem ao considerar as explicações reducionistas de dois livros. Um é uma cópia brochura da Bíblia e o outro é uma cópia dos horários de trens de 2006. Nos níveis atômico e molecular, ambos consistem em uma seleção similar dos 92 elementos naturalmente presentes. Consequentemente, pode-se dizer que eles são essencialmente os mesmos. No próximo nível, acima suas descrições podem também ser indistinguíveis, pois ambos consistem quimicamente de celulose na qual o carbono é distribuído na forma de tinta de impressora. Eles podem fisicamente ter massas similares, volumes e formas. Mesmo no próximo nível mais superior, suas construções mostram pouca diferença, com cada um possuindo folhas de papel unidas em uma ponta, a frente e o verso sendo de material firme, talvez com impressão colorida neles. A tinta preta de impressora no interior é organizada a partir do mesmo número, superior a 26, de formas distintas tais como “a”, “j”, “p”, “5”, “?”. Mais uma vez, pode-se dizer que, neste nível, os dois livros são essencialmente os mesmos. Ambos contêm grupos dessas formas ou símbolos, muito embora os horários de trens tenham muito mais números do que letras. Muitos desses grupos de letras são o mesmo – as palavras. O que é diferente sobre os livros, no entanto, é a forma como as palavras são organizadas em sequência, as sentenças, para que tenham significado. Levando isto em consideração, um livro já está desatualizado e é inútil, enquanto o outro é, de muitas formas, um livro atemporal. A partir da organização de palavras individuais, em sentenças, novas propriedades emergem, aquelas que têm sentido e propósito. Em um dos casos, isto significa que se pode esperar trens em tempos específicos e o propósito é permitir que passageiros planejem suas viagens. No outro livro, “o propósito primário dos escritos sagrados”, para usar as palavras de Galileu, é o “trabalho de Deus e a salvação das almas”.11
A propriedade da própria vida, embora difícil de definir precisamente, é completamente omitida em um estudo dos átomos constitutivos que formam a água viva. Prosseguindo na escala de complexidade, muitos cientistas considerariam a consciência como uma propriedade emergente da alta complexidade de nossos cérebros. A frase “Elizabeth foi comprar pão” perde todo o sentido quando expressada na linguagem da neurociência, tais como disparo de neurônios. Assim, ela é estritamente não-redutível a este nível, o que naturalmente não implica dizer que a descrição do neurocientista do cérebro de Elizabeth enquanto ela vai comprar pão não seja perfeitamente adequada. A mente parece ser uma propriedade emergente do cérebro.
Embora a descoberta e o reconhecimento de propriedades emergentes sejam intrínsecos ao empreendimento científico, a própria ciência não lida com questões relacionadas ao propósito último e ao sentido da vida. Tais questões encontram-se fora de sua esfera de competência. De fato, muitos biólogos evitam expressamente qualquer forma de explicação teleológica12 na biologia. Assim, por exemplo:
“A teoria da evolução através da seleção natural permite especulação sobre a função para a qual coisas particulares são adaptadas, e assim permite afirmações sobre o propósito que uma adaptação serve, sem qualquer compromisso com a ideia de um projetista que a colocou lá por um propósito, e sem a crença não-científica de que a utilidade futura de um elemento traz, de alguma forma, sua existência por meio de um tipo de causação inversa.”
Mas isto não significa, naturalmente, que não existe mais um “projetista” ou “propósito” em um sentido último, nem que a evolução significa ateísmo. Simplesmente existem questões nas quais a ciência não é competente para responder. Portanto, é uma convenção metodológica na ciência não se referir a Causas Primeiras (Deus), mas se ater a causas imediatas.
Assim, enquanto o reducionismo metodológico é teologicamente benigno, novas propriedades emergentes que podem surgir na explicação da organização dos componentes podem ser facilmente omitidas ao se considerar apenas o nível de componentes. Isto é um lembrete de que a explicação reducionista, tomada isoladamente, sempre está sujeita a ser incompleta.
Reducionismo epistemológico
“Reducionismo epistemológico pode ser descrito como sendo a visão de que, se as teorias e leis experimentais formuladas em um campo da ciência (e.g. biologia, psicologia, sociologia) se mostram casos especiais de teorias e leis formuladas em algum outro ramo da ciência (e.g. química física, biologia ou neurociências), diz-se, então, que o conjunto anterior de teorias e leis experimentais é reduzido ao último.”14
A epistemologia diz respeito à natureza, aos fundamentos da crença e do conhecimento, àquilo que podemos conhecer e como conhecemos. Já vimos a ideia de que, caso se considere que um gás consiste em um grande conjunto de moléculas em um movimento aleatório contínuo, pode se entender que a pressão de gás surge de bombardeios contínuos dessas moléculas nas paredes do vaso de contenção. Se, entretanto, outros pressupostos forem feitos (que as moléculas não ocupam espaço e que nenhuma energia é perdida quando colidem, é possível derivar uma lei comum da física) a lei do gás de Boyle15 (sem mesmo ir ao laboratório para fazer um experimento). Isto ilustra como uma teoria em nível mais alto (pressão de gás) pode ser reduzida a uma teoria em um nível mais baixo (partículas em movimento), que é a essência do reducionismo epistemológico. Mais uma vez, como no reducionismo metodológico, isto representa um auxílio significativo em nosso entendimento do mundo e não apresenta qualquer desafio à crença religiosa.
Reducionismo ontológico
“Por causa do sucesso do reducionismo metodológico como procedimento de pesquisa, muitos cientistas, que acham tais métodos uma necessidade e bem-sucedidos, veem as entidades que estão estudando como ‘nada a não ser’ seus componentes. Sistemas biológicos nesta visão ‘não são nada além de’ padrões complexos de átomos e moléculas. Certamente, poderíamos concordar que eles consistem de átomos e moléculas. Muitos, porém, prosseguiriam para sugerir (e esta é uma transição significativa) que não há nada mais que valeria a pena ser dito.”16
“Ontologia”, derivada da palavra grega para “ser”, é o estudo daquilo que existe. A frase reducionismo ontológico é conferida à visão de que não apenas sistemas complexos podem ser descritos em termos de seus componentes, mas que, ao assim fazê-lo, tudo que vale a pena ser dito sobre eles tem sido dito. Isto vai muito além de ser um princípio metodológico. É uma posição filosófica que não está implicada pelo princípio; é uma crença metafísica que, por isso, às vezes é chamada pelo nome alternativo de reducionismo metafísico17. Em nosso exemplo anterior, seria claramente muito diferente de dizer “Este livro não é nada além de carbono em celulose” do que dizer “Este livro é carbono em celulose”.
As “palavras-sirene” que marcam o reducionismo ontológico são palavras como “simplesmente”, “apenas”, “somente” e principalmente “nada além de” e, por causa disto, o falecido Donald MacKay apelidou o reducionismo ontológico de um “nada amanteigado”.
O aviso “LIMITE POLICIAL, NÃO CRUZE” é apenas um letreiro azul em fita branca e a placa “PERIGO DE MORTE” próximo ao transformador de energia elétrica não é nada além de tinta preta e amarela sobre o metal. Remova a fita, a tinta e o metal e nada resta. Há mais coisas, porém, a serem ditas a respeito destes objetos do que sobre as substâncias que os constituem, e ignoramos aquele “elemento extra”, a propriedade emergente de significância, em nosso risco.
O reducionismo ontológico, frequentemente abreviado por apenas “reducionismo”, é essencialmente uma tática de desmascaramento. Aqueles que usam o termo buscam depreciar aspectos do mundo, sobre os quais eles talvez discordem, ao afirmarem que uma maneira (a maneira científica) de se olhar para coisas é tudo que importa. É importante, porém, fazer uma distinção entre o que é uma afirmação infundada (porém apresentada com frequência) e o que é um argumento a ser avaliado, aceito ou refutado. Em contraste ao reducionismo metodológico, que tem sido descrito como teologicamente benigno, o reducionismo ontológico pode ser apelidado teologicamente de “maligno”, uma vez que, se suas afirmações pudessem ser justificadas, elas descredibilizariam qualquer tipo de vida espiritual, e de fato muito mais coisas.
No que diz respeito à obtenção de um entendimento multifacetado, matizado do mundo, este tipo de reducionismo pode ser visto como um obstáculo.
Uma área de estudo onde este desmascaramento tem sido particularmente evidente é no comentário sobre a natureza da humanidade. Alguns que rejeitam a ideia de humanos como tendo sido feitos à “imagem de Deus” têm ampliado a continuidade da humanidade com o restante do reino animal. O fato de que 96% do DNA de humanos e chimpanzés é virtualmente idêntico é usado para reforçar a ideia de que um ser humano não é nada além de “um mero símio”. O que esta imagem de 96% apoia é a nossa ancestralidade comum com o chimpanzé. Isto não deveria ser interpretado no sentido de se entender que os 4% de diferença é, em si mesmo, o que nos torna humanos. No nível genético, as diferenças principais entre humanos e chimpanzés provavelmente sejam as regiões de controle que regulam o tempo e a expressão dos genes durante o desenvolvimento embrionário. Juntamente com esta convergência, no entanto, devem ser consideradas as enormes diferenças entre estes dois membros do reino animal. Elas são evidentes em conquistas técnicas humanas, organização social e capacidades linguísticas. É verdade que chimpanzés podem fazer ferramentas rudimentares tais como unir duas varas para pegar uma banana fora da jaula que está fora do alcance de apenas uma. Eles podem realizar comunicações elementares em ASL (Língua de Sinais Americana) e possuem extensivas estruturas sociais. Tais atributos, porém, ficam muito distantes da possibilidade de viagem no espaço, trabalhos literários de arte ou das complexidades do governo local e central. Esta comparação de humanos com chimpanzés ressalta outro problema do reducionismo metodológico, qual seja, de que quanto mais se busca por convergências a todas as coisas, mais se falha em considerá-las. Afinal, se nos voltarmos dos 96% do DNA compartilhado para as partes constitutivas do próprio DNA, compartilhamos 100% de nossos átomos com os chimpanzés! Porém, como sugerido no início do parágrafo, a distinção bíblica entre a humanidade e outros membros do reino animal não é a forma física, mas a natureza espiritual. Ser feito à “imagem de Deus” refere-se, entre outras coisas, a ser capaz de entrar em um relacionamento espiritual com Deus, que é melhor descrito no nível pessoal, e não no nível do DNA.
Naturalismo
Há uma linha tênue dividindo o reducionismo ontológico (“o nada amanteigado”) e o “naturalismo”, termo que é geralmente entendido como “nada, em última instância, resiste em ser explicado pelos métodos característicos das ciências naturais”. O “naturalismo” carrega um pressuposto adicional ao reducionismo ontológico, qual seja, o de que tudo que existe está sujeito aos métodos da ciência. Entretanto, se a ciência é o estudo do mundo natural, estudar qualquer coisa que seja do tipo nãonatural pareceria impotência. A investigação religiosa inclui questões sobre a possibilidade de qualquer coisa além do mundo natural existir (Deus?), à qual o mundo natural deve sua existência. Não é útil recorrer à ciência (o estudo do mundo natural) para responder à questão “existe algo além do mundo natural?”! As limitações da ciência para responder questões como estas são destacadas nos requisitos da versão mais recente da Science, The National Curriculum for England (2006). Na etapa 4 do programa de estudos, ela declara que os “Alunos devem ser ensinados: […] de que existem algumas questões […] que a ciência não pode responder”.18
A afirmação naturalista de que “nada, em última instância, resiste em ser explicado pelos métodos característicos das ciências naturais” levanta a importante questão sobre o que conta como explicação para algo19. Em primeiro lugar, é necessário lembrar que existem muitos tipos diferentes de explicação. Dois tipos de explicações que se fundam na razão e são relevantes ao assunto deste artigo são aqueles que fornecem explicações em termos de mecanismos (científicos) e aqueles que explicam em termos de agência e propósito divinos. Não há incompatibilidade lógica nas duas declarações “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1) e “No princípio, houve um Big Bang”. Explicações científicas não são apenas explicações possíveis, nem necessariamente as melhores explicações, dependendo da questão em análise. Uma explicação sobre o porquê a vítima morreu pode ser científica, descrevendo os efeitos do arsênico no corpo humano, mas à polícia o tipo de explicação de maior importância seria de agência e propósito.
Para retornar a um ponto que tocamos antes quando nos referimos à teleologia, é uma convenção metodológica na ciência referir-se apenas às causas imediatas, omitindo todas as referências às Primeiras Causas. A ciência, portanto, está preocupada com explicações de mecanismos físicos e não com explicações que dizem respeito a Deus. Não há necessidade de se mencionar o Criador ao se explicar mecanismos de criação, assim como não há necessidade de se mencionar Henry Ford ao se explicar como um carro funciona. Não há desfeitas. O próprio empreendimento científico não implica qualquer negação da agência divina. Isto está fora de seus termos de referência e deixa a questão inteiramente aberta. Esta convenção permite que pessoas de todas as fés e de nenhuma fé trabalhem juntas no empreendimento científico comum. Cientistas podem adotar uma visão naturalista, mas, se assim fizerem, estarão indo além da ciência e importando visões metafísicas próprias.
Conclusão
Somente quando a ferramenta cientificamente produtiva do reducionismo metodológico é contaminada pela noção metafísica do “nada amanteigado” é que as tensões surgem para a religião:
“É quase autoevidente que o ‘nada amanteigado’ apresenta um sério desafio à perspectiva religiosa sobre a vida. Minha crença é que, em vez de serem quaisquer teorias científicas, é esta posição filosófica adotada por muitos cientistas, com a propaganda colocada em seu favor, que tem sido o maior fator contributivo à ampla aceitação na sociedade de que a ciência e a crença religiosa não estão apenas em conflito, mas que a ciência fez com que a religião se tornasse completamente supérflua.”20
Tal reducionismo ontológico, porém, não constitui nenhuma parte da própria ciência. Nos lugares em que ela é encontrada entre seus praticantes não é porque ela é inerente à ciência nem porque a ciência conduz a ela, mas sim porque ela tem sido introduzida fraudulentamente a partir do início da discussão.
Veja também: A Redenção da Científica
Notas
¹ Um neurônio é uma célula nervosa. Esta frase foi sugerida por Francis Crick sobre como Alice, de Lewis Carrol, teria apresentado a hipótese de Crick em Crick, F. The Astonishing Hypothesis, London: Simon & Schuster (1994), p. 3.
² Ibid., p. 3.
³ Ibid., p. 258.
4 Ibid., p. 261f.
5 Collins, F. ‘The Human Genome Project: Tool of Atheistic Reductionism or Embodiment of the Christian Mandate to Heal?’, Science and Christian Belief (1999) 11(2), 110. Veja também Collins, F. A Linguagem de Deus [The Language of God, New York: Free Press (2006)].
6 Barbour, I.G. Issues in Science and Religion, London: SCM Press (1966) p. 7.
7 Citado por Howard, B.A. em The Proper Study of Mankind e citado em Joad, C.E.M. Philosophy for our Times, London: The Scientific Book Club (1942), p. 146.
8 Peacocke, A.R. Reductionism in Academic Disciplines, Guildford: Society for Research into Higher Education & NFER-Nelson (1985), p. 9.
9 Passmore, J. BOYLE, ROBERT (1627-1691) em The Encyclopedia of Philosophy 1, London: Collier Macmillan Publishers (1967) p. 359.
10 Virtuoso – an experimenter or investigator in the arts or sciences.
11 Galileu, G. (1615) ‘Letter to Madame Christine of Lorraine, Grand Duchess of Tuscany, Concerning the Use of Biblical Quotation in Matters of Science’ trans. in Seeger, R.J. Galileo Galilei, his life and his works, Oxford: Pergamon (1966), p. 271.
12 Teleologia, da palavra grega telos, “fim”, é o estudo dos fins e propósitos das coisas.
13 Blackburn, S. The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford: OUP (1994), p. 374.
14 Peacocke, op. cit. [8], p. 14.
15 A lei de Boyle declara que “a temperatura constante para uma quantidade fixa de massa, a pressão absoluta e o volume de um gás são inversamente proporcionais”. Isto significa que, contanto que nenhum gás escape e que você não o aqueça ou o resfrie, dobrando a pressão pelas metades do volume e assim por diante.
16 Peacocke, op. cit. [8], p. 11.
17 Metafísica é o termo agora usado para análises que suscitam questões sobre a realidade que estão além da competência da ciência para responder.
18 Science: The National Curriculum for England, London: Department for Education and Skills/ Qualifications and Curriculum Authority (2006), p. 37.
19 Poole, M. W. ‘Explaining or Explaining Away? – The Concept of Explanation in the Science-Theology Debate’ Science and Christian Belief (2002) 14(2), 123 – 142.
20 Holder, R. D. Nothing But Atoms and Molecules? Probing the limits of science, Tunbridge Wells: Monarch (1993), p. 12.
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Data de publicação: Abril de 2007. © Instituto Faraday para Ciência e Religião
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