DAM FILHO [1]
Introdução
De acordo com o senso comum, quando alguém é chamado de cientista, é porque tal pessoa faz pesquisas dentro do campo das ciências naturais ou, como dizia C. S. Peirce, nas ciências descritivas ou ciências duras. Embora este pensamento esteja presente no senso comum, não está circunscrito a este. Dentro da Academia, entre pesquisadores, tais pensamentos não são apenas sustentados, mas até mesmo defendidos. Todavia, será que Ciência, com “C” maiúsculo, se resume àquilo que se pode observar empiricamente? Ou ao que se pode dissecar em um laboratório? Refletiremos brevemente a este respeito no presente artigo.
Antes de falar em fazer ciência é necessário primeiramente definir o que é Ciência. O termo latino scientia significava conhecimento num sentido mais abrangente. No conhecido texto sobre o amor, na sua primeira carta aos Coríntios, o apóstolo Paulo diz que se tivesse toda a ciência, sem amor, nada seria (1Co 13:2 RC). Nesse trecho do Novo Testamento, a palavra scientia é a tradução latina do termo grego gnose, que significa conhecimento. A palavra então foi apropriada pela ciência moderna que lhe conferiu uma conotação mais específica, e passou a ser compreendida como “[…] um conhecimento objetivo, metódico, baseado em comprovações que aliam experiência e razão, fazendo uso da quantificação e da linguagem matemática” (RODRIGO, 2007, p. 72). A Ciência Moderna nasceu com Copérnico e Galileu e, em seu desenvolvimento posterior, não apenas foi fortemente marcada pelo positivismo de Comte e Durkheim, e o empirismo de Locke e Kant, mas essas correntes filosóficas foram determinantes para a consolidação das ciências naturais tais como as conhecemos atualmente. Como consequência disso, a pesquisa quantitativa foi concebida como símbolo da abordagem científica.
Uma atividade humana chamada Ciência
Em sua busca por autonomia, a Ciência foi se distanciando cada vez mais da filosofia, especialmente em questões de metafísica. Destarte, apenas aquilo que a razão pudesse oferecer explicações e construir modelos teóricos objetivos faria parte do objeto de estudo da Ciência. Infelizmente, a primazia exacerbada dada à razão durante a Revolução Francesa culminou no culto à razão e na rejeição do cristianismo. É preciso reconhecer, no entanto, como nos alertam Pearcey e Thaxton (2005, p. 24), que o desenvolvimento da ciência moderna no ocidente tem suas raízes no pensamento cristão. O
“[…] monoteísmo da Bíblia exorcizou os deuses da natureza, libertando a humanidade para desfrutá-la e investigá-la sem medo”. Ademais, para que o mundo natural se tornasse um objeto de estudo era necessário que esse pudesse “[…] ser considerado um lugar onde os acontecimentos ocorrem de modo confiável e regular – o que também foi um legado do Cristianismo”.
A construção do conhecimento seria obtida mediante elaborações mentais advindas das reflexões do pesquisador sobre o objeto de seu estudo, suas causas, consequências, oposições etc. (WERNECK, 2006). Nesse ambiente, a pesquisa considerada científica é prioritariamente experimental e validada pela linguagem matemática. O paradigma das ciências naturais tornou-se condição sine qua non para que uma investigação fosse aceita dentro de uma comunidade de pesquisa. O paradigma científico a que estamos nos referindo é descrito por Thomas Kuhn (1998, p.13) como “[…] as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. O paradigma serve como um modelo para se fazer Ciência e traz certa unidade entre cientistas de uma determinada época. No entanto, é necessário ressaltar que
O objetivismo inerente a essa posição teórica reduz o conhecimento científico a um conjunto de fatos estruturados por leis, sem se dar ao trabalho de problematizar o ato mesmo de constituição dos fatos ou a participação do sujeito cognoscente nesse processo. (RODRIGO, 2007, p. 73).
O processo de construção do conhecimento e os sujeitos atores deste processo foram colocados à margem na pesquisa considerada tradicionalmente como científica. Como consequência o paradigma quantitativo tornou-se indispensável para a validade da pesquisa. Todavia, não apenas a natureza, mas o ser humano e a sociedade também necessitam receber o olhar crítico reflexivo da ciência.
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Do Natural ao Social
Desde a antiguidade até a ciência moderna, a pesquisa sempre desenvolveu-se obedecendo à seguinte sequência: primeiramente os estudos têm como objeto a natureza, o mundo concreto e, em seguida, é que a pesquisa se volta para o ser humano e a sociedade (WERNECK, 2006).
Nos primeiros passos da pesquisa social, o positivismo e o empirismo exerceram influência na práxis das, assim chamadas, ciências humanas. E durante um tempo considerável, a pesquisa quantitativa possuiu proeminência no processo de investigação. Isso porque, como já apontamos anteriormente, a quantificação era tomada como um símbolo do método científico (BOGDAN; BIKLEN, 1994). No entanto, diante da necessidade de compreender e interpretar os fenômenos sociais, se fez imprescindível a busca por uma nova abordagem de pesquisa sob um novo paradigma que desse conta do objeto de estudo das ciências do humano [2]. Não é possível investigar o ser humano e a sociedade como se fossem um objeto em um laboratório. Nesse contexto, em tempos de crise de paradigmas, o conhecimento aceito como científico passa a ser considerado como uma prática de saberes entre tantas outras e não como a melhor ou a única (SANTOS, 1989). As exigências do objeto de estudo operaram a quebra de paradigmas em vigência e fomentaram a busca por novos modelos e estilos de investigação.
A pesquisa qualitativa tem seu início no século XIX, principalmente no campo de estudo da antropologia e da sociologia. Entretanto, essa abordagem teve inicialmente uma aceitação mais ampla entre os antropólogos do que entre os sociólogos, que tardaram um pouco mais em desenvolvê-la devido à influência de Durkheim. Esse teórico postulava uma abordagem mais quantitativa tendo em vista conferir cientificidade à pesquisa sociológica (GODOY, 1995). Bachelard (2005, p. 76) ressalta o quanto era ignorada a “[…] necessidade de incorporar as condições de aplicação na própria essência da teoria”. Os contextos e as condições de produção e aplicação de um determinado saber não faziam parte da investigação. Afastar-se totalmente do paradigma cientificamente aceito naquele momento poderia ser motivo de desqualificação do trabalho de pesquisa. Ainda assim, é na sociologia, com a importante contribuição da conhecida Escola de Chicago, que a pesquisa qualitativa se desenvolve e começa alcançar consolidação. A Escola de Chicago tem origem no trabalho de um grupo de professores da Universidade de Chicago que realizavam pesquisas e promoviam a publicações dentro das ciências sociais, fora do paradigma vigente nas ciências naturais. Nas décadas seguintes esse enfoque continuou sendo desenvolvido e, a partir dos anos 1960, outras áreas de estudo passaram a se interessar e a utilizar essa abordagem.
Novos objetos exigem novos enfoques
Embora a pesquisa quantitativa tenha sido recebida como o método da investigação científica por excelência, ela não foi suficiente para fornecer o subsídio necessário às ciências sociais. A necessidade de se interpretar a realidade social sob o ponto de vista do sujeito da investigação não somente abriu espaço, mas exigiu uma abordagem qualitativa na pesquisa. “O termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa […]” (CHIZZOTTI, 2003, p. 221). O pesquisador necessita compreender o contexto sócio-histórico no qual está desenvolvendo o estudo, ademais ele precisa ser aceito entre os pesquisados, isto é, o investigador faz seu trabalho em parceria com aqueles a quem estuda.
Visando a uma melhor conceituação de pesquisa qualitativa, apresento, de acordo com Bogdan e Biklen (1994), as cinco principais características dessa abordagem. Em primeiro lugar, o pesquisador busca a produção dos dados da sua investigação no ambiente natural do objeto de estudo. É preciso gastar um tempo considerável para alcançar uma melhor compreensão dos problemas da investigação. Em segundo lugar, o enfoque qualitativo é descritivo, isto é, procura descrever minuciosamente o objeto de estudo sem recorrer à linguagem matemática. Em terceiro, o processo da pesquisa é tão ou mais importante que os resultados. Em quarto, a tendência dessa abordagem é a análise indutiva dos dados produzidos no estudo. As abstrações vão sendo construídas durante o processo de investigação e não partem de hipóteses levantadas a priori. Finalmente, o foco da pesquisa qualitativa está na construção de sentidos que os sujeitos atribuem aos problemas estudados. Utilizo a expressão construção de sentidos com um valor hermenêutico, ou seja, no sentido de interpretação da realidade pesquisada a partir de parâmetros dados.
As diferenças mais evidentes entre pesquisa quantitativa e qualitativa podem ser demonstradas em que a primeira parte de hipóteses levantadas a priori e, através de medições, leva à quantificação dos resultados. A segunda, por sua vez, não busca medições meramente objetivas ou estatísticas analíticas, mas parte de questões que orientam o estudo e vão sendo definidas ao logo do processo. A pesquisa qualitativa, de acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 16), não tem por objetivo “[..] responder a questões prévias ou de testar hipóteses […]”, ou seja, ela não parte necessariamente de alguma verdade prévia. Mas, sim, tenciona privilegiar, “[…] essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigação”. Na abordagem qualitativa, a expressão coleta de dados não é entendida como adequada, pois é durante o processo de investigação que ocorre a produção dos dados.
É necessário pontuar que, ainda que as abordagens quantitativa e qualitativa sejam distintas, às vezes, a linha que as divide nem sempre é tão exata quanto possa parecer. Por exemplo, toda pesquisa precisa de uma interpretação dos dados. Não é verdade que os dados falam por si só e que o pesquisador quantitativo apenas observa passivamente o que os dados dirão. De acordo com Bauer e Gaskell (2015, p. 24), “Os dados não falam por si mesmos, mesmo que sejam processados cuidadosamente, com modelos estatísticos sofisticados”. É necessária a elaboração mental, isto é, a construção de um discurso interpretativo, comumente descrito como pertencente à pesquisa qualitativa. Mesmo no caso de fatos concretos presentes na natureza, ainda assim, a compreensão destes fatos passa, necessariamente, por uma elaboração discursiva, que não pode ser dogmática. Quero destacar este ponto para mostrar como a pretensa objetividade do método quantitativo não ocorre de uma forma absoluta.
Compreender, não necessariamente resolver
A investigação qualitativa não se resume à análise do objeto, como se ele fosse estático, mas busca-se a compreensão dos processos da investigação e as relações dos sujeitos envolvidos. É interessante notar que não somente o objeto de pesquisa, mas o próprio pesquisador é concebido de maneira distinta. Pois, o pesquisador “[…] faz parte da pesquisa, a neutralidade é impossível, sua ação e também os efeitos que propicia constituem elementos de análise” (BAKHTIN, 2011, p. 25). Embora essa concepção de não neutralidade do pesquisador na abordagem qualitativa de pesquisa seja uma condição dentro dos estudos sociais, poderia ser também estendida para as ciências naturais. Pois, como afirmam Dooyeweerd e Van Til, o pensamento teórico, em qualquer campo da ciência no ocidente, foi elevado a uma verdade filosófica, ou seja, a uma condição pré-teórica [3] necessária ao fazer científico. Em outras palavras, todo e qualquer dado produzido durante uma investigação que não seja fundamentado na razão, perderá validade científica.
A abordagem apresentada neste artigo possibilita a interação com o objeto de estudo, sendo peculiar aos estudos no campo das ciências do humano. Peculiar, mas não necessariamente restrita a esta. Toda Ciência se apresenta, pelo menos na Academia e em periódicos, mediante a elaboração discursiva. O estudo, seja sobre fissão molecular ou o comportamento de povos ribeirinhos, é mediado pela elaboração discursiva que temos acesso ao conhecimento científico. O discurso, entretanto, está fatalmente ligado às crenças pré-teóricas que subjazem aos paradigmas vigentes.