Por Bruno Ribeiro Nascimento*
Os naturalistas ofereceram, desde que o mundo é mundo, uma série de argumentos contra a existência de Deus, contra a razoabilidade da crença teísta, principalmente a crença cristã, sobre a incompatibilidade da ciência com a religião, sobre a necessidade do recuo dos religiosos no espaço público, entre outros tópicos filosóficos complicados e difíceis [1]. Nenhum desses assuntos é fácil de se tratar e exigem um nível de raciocínio significativo.
Com a Covid-19, alguns desses ataques ficaram mais intensos e parecem fazer mais sentido: onde está Deus que não detém tal vírus? Por que tais sofrimentos acontecem, não apenas hoje, mas durante toda a história humana? Geralmente, as pessoas veem dois tipos de incompatibilidade entre Deus e o mal: por um lado, alguns afirmam que não é plausível pensar que Deus e o sofrimento possam coexistir juntos; outras não elaboram um argumento para essa ideia, mas sentem emocionalmente que um Deus bom não permitiria uma coisa como a Covid-19.
O filósofo David Hume (2016) foi um dos que colocaram esse problema, conhecido na filosofia como o ‘problema do mal’ [2], de forma mais forte e sucinta:
“Por que há miséria em tudo no mundo? Certamente não é por acaso. Devido a uma causa, então. Deve-se à intenção da divindade? Mas ela é perfeitamente benevolente. É contrária à sua intenção? Mas ela é todopoderosa. Nada pode abalar a solidez desse raciocínio, tão conciso, tão claro, tão decisivo” (HUME, 2016, 34).
Essas objeções não vêm apenas dos descrentes. A Bíblia possui um livro inteiro sobre o problema do sofrimento – o livro de Jó. Há vários salmos que perguntam não apenas por que há males no mundo, mas por que justos e ímpios parecem ser tratados da mesma forma. Além disso, essas objeções são tão antigas quanto o tempo dos patriarcas. Abraão certa vez fez o seguinte questionamento a Deus quando o Senhor pronunciou juízo sobre Sodoma e Gomorra:
“Exterminarás o justo com o ímpio? E se houver cinquenta justos na cidade? Ainda a destruirás e não pouparás o lugar por amor aos cinquenta justos que nele estão? Longe de ti fazer tal coisa: matar o justo com o ímpio, tratando o justo e o ímpio da mesma maneira. Longe de ti! Não agirá com justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18: 23-25).
Contudo, gostaria de oferecer não uma resposta do porquê o Covid-19 está entre nós, mas uma objeção geral contra todo e qualquer tipo de argumento do mal levantado pelos naturalistas baseado em um argumento dos filósofos cristãos Alvin Plantinga e Thomas Crisp. [3]
Algumas pessoas acreditam que é insensível fazer tal reflexão em tempos de pandemia. Julgam que os que tratam o argumento moral de forma filosófica, principalmente em tempos como o nosso, sofrem de algum sinal de indiferença para com o que acontece no mundo. Voltaire, três anos depois do terrível terremoto de Lisboa em 1755, zombou de tais tentativas em sua sagaz obra Cândido, ou o otimismo.
Contudo, nós somos seres racionais e, mesmo que queiramos, não conseguimos fugir das questões filosóficas. Somos seres humanos e nossa natureza quer viver à sombra de algo que transcenda nossos interesses imediatos e nossas preocupações da quarentena. Os filósofos são chamados a pensar sobre os problemas do mundo, não apenas a senti-los. Como disse C. S. Lewis uma vez “não é bravata; é a nossa natureza” (Lewis, 2008, p. 54), pois o filósofo em tempos de infortúnio deve responder aos desafios lançados pelos céticos, “se não por outra razão, porque a má filosofia precisa de resposta” (LEWIS, 2008, p. 61). Se os filósofos cristãos não oferecerem argumentos bons, as pessoas vão se deixar levar por argumentos ruins. Em tempos de pandemia, em que nossos nervos e sentimentos estão à flor da pele, é importante preservarmos o máximo possível de nossa natureza humana, abrindo um pouco nossos ouvidos para a voz da razão e fechando para nossas pulsões.
Sendo assim, o argumento que os naturalistas na internet estão oferecendo a partir do caso da Covid-19, enfraquece, anula, limita, aniquila, invalida ou torna a crença cristã de alguma forma irracional?
Penso que não. Os naturalistas não conseguem ver as razões que Deus poderia ter para permitir a Covid-19. Infelizmente, inferem daí que Deus não as tem. Contudo, o fato de nós não sabermos quais as razões de Deus para permitir a Covid-19 não é um argumento contra Deus, mas contra nossas capacidades cognitivas.
E aqui começa nosso argumento, pois penso que há uma ironia nessa linha de raciocínio: os naturalistas acreditam que nossas faculdades cognitivas são produtos de processos evolutivos, tal como descrito pela teoria da evolução, mas com um adendo: tal processo não é guiado, pois não existe Deus. A teoria da evolução darwiniana é um processo conduzido principalmente por dois mecanismos distintos: mutação genética aleatória e seleção natural. O “objetivo” de ambos os processos (se é que é possível falar de objetivo aqui) é ser adaptado para fins de sobrevivência, alimentação, fuga e reprodução. Como disse certa vez Richard Dawkins:
“A única coisa que importa para a seleção natural é que ‘cada lado está se esforçando para superar o outro porque, tanto para um quanto para o outro, os indivíduos que forem bem sucedidos transmitirão seus genes que contribuíram para seu êxito’ (DAWKINS,2009, p. 359).
O problema é que, se a seleção natural está exclusivamente preocupada com nossa sobrevivência, isso diz respeito também às nossas faculdades cognitivas: elas foram geradas, não para obter crenças verdadeiras sobre o mundo, nem muito menos para formar argumentos filosóficos profundos sobre questões complicadas, mas para dar conta do Homo sapiens conseguir as quatro virtudes biológicas citadas acima: alimentação, fuga, luta e reprodução. Se tal adaptação gera crenças verdadeiras ou não, não é a preocupação da seleção natural. O conteúdo da crença, do ponto de vista da evolução, é completamente irrelevante para que esses desafios sejam superados.
Assim, dada a teoria da evolução e o naturalismo, nossa mente não tem por objetivo a produção de crenças verdadeiras, ou a produção de um aparato cognitivo confiável sobre as questões filosóficas do mundo, mas a produção de comportamento adaptado. E o fato do Homo sapiens ter sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso comportamento foi bem sucedido para esse objetivo específico; não garante que os nossos processos de produção de crenças sejam confiáveis ou que as nossas crenças sejam verdadeiras, principalmente para assuntos filosóficos difíceis, como é o problema do mal. Uma crença pode ser falsa, ridiculamente falsa, nocivamente falsa, terminantemente falsa… mas se ela ajuda na sobrevivência, então será favorecida pela seleção natural. A seleção natural não guiada não se preocupa, minimamente, com seu conteúdo.
Isso não é uma paranoia de um filósofo teísta em quarentena. O próprio Darwin se preocupou com tal questão:
“Comigo, levanta-se sempre a dúvida horrível de as convicções da mente humana, que foram desenvolvidas a partir da mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se é que em tal mente há quaisquer convicções?” (DARWIN, 1887, p. 315-16).
O grande filósofo naturalista, Thomas Nagel, também já deu coro a preocupação de Darwin:
“Se […] chegássemos a acreditar que nossa capacidade cognitiva de criar teorias objetivas é produto da seleção natural, tal coisa justificaria manter um sério ceticismo quanto a seus resultados quando estes ultrapassassem um âmbito muito restrito e conhecido” (NAGEL, 2004, p. 130).
Sendo assim, o filósofo Thomas Crisp fez uma importante pergunta: qual a probabilidade de que nossas faculdades cognitivas, formadas por tal processo aleatório sem nenhuma preocupação com a verdade, sejam confiáveis em relação a questões filosóficas das quais não é nada fácil saber a resposta, por exemplo, a de que Deus não teria nenhuma razão para permitir o sofrimento ou a de que a Covid-19 é um argumento contra Deus?
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Para ser mais claro, se a evolução não está ‘preocupada’ em gerar crenças verdadeiras, mas apenas em gerar formas de sobrevivência, por que esperar que nossos argumentos filosóficos sejam verdadeiros, se a verdade de tais crenças é irrelevante para o comportamento adaptativo? Por que acreditar que nossas faculdades cognitivas são confiáveis no que diz respeito à geração de crenças verdadeiras? Uma vez que a seleção natural, juntamente com a crença naturalista, implicam que nós e nossas faculdades cognitivas surgiram por meio de processos evolutivos não guiados, cegos e aleatórios, por que esperar que tais processos nos tenham dotado de potencialidades cognitivas confiáveis sobre assuntos filosóficos difíceis – assuntos que, diga-se de passagem, estão muito além das exigências da vida humana normal e da nossa necessidade de sobrevivência em uma selva qualquer?
Certamente, a resposta aqui é que não sabemos se elas são confiáveis para isso. Talvez elas possam até ser confiáveis para questões mais banais e simples – tais como conseguir comida e água. Mas não para saber se existe uma incompatibilidade entre um Deus todo poderoso, completamente bom e a realidade do mal no mundo. Se nossas faculdades cognitivas foram produzidas sem orientação, sem o objetivo de alcançar a verdade, por que deveríamos confiar nelas para questões tão profundas e sofisticadas? Mais especificamente, por que tais faculdades cognitivas, selecionadas para serem bem sucedidas em tarefas dadas pela seleção natural, seriam confiáveis com relação a questões filosóficas difíceis, questões totalmente desconectadas das preocupações da vida cotidiana?
Quando o naturalista argumenta, ele parte do pressuposto que suas faculdades cognitivas são confiáveis, isto é, elas são favoráveis à verdade, especialmente no que diz respeito a assuntos filosóficos. Eles partem do pressuposto de que, dado o naturalismo e a teoria da evolução não guiada, estamos em uma posição de saber se há um Deus ou não, se a Covid-19 argumenta contra esse Deus ou não, se temos razões para pensar que estamos sós no universo ou não. Mas tais assuntos não foram necessários para o sucesso evolutivo de nossos ancestrais (dificilmente alguém consegue se reproduzir por meio apenas de um argumento).
Logo, se você tem uma razão para não confiar nas suas faculdades cognitivas sobre assuntos filosóficos difíceis, você tem uma bela razão para duvidar de toda e qualquer crença filosófica produzida por tais faculdades. Você não tem uma razão para confiar que o argumento do mal é bom ou que a existência de Deus é improvável dada a Covid-19. Afinal, se você tem boas razões para pensar que o termômetro da sua piscina não é confiável, então certamente não deve acreditar no que o termômetro diz sobre a temperatura da água. No final das contas, o naturalista argumenta muito confiantemente que a Covid-19 torna a crença em Deus improvável, irracional ou ainda impossível, mas sem saber se o equipamento que produz aquele argumento é confiável ou não.
Notas
- Por naturalismo entende-se a ideia de que não existe Deus ou qualquer coisa minimamente parecida com uma divindade; entende-se que o cosmo é tudo que existiu, existe e existirá, tal como disse certa vez Carl Sagan.
- O problema do mal diz respeito a uma questão dentro da filosofia que é colocada pela existência do mal no mundo e sua compatibilidade com a crença em Deus. Mais especificamente, a questão filosófica colocada é se o mundo contém uma quantidade de dor e sofrimento tal que forneceriam a base para um argumento que tornaria irracional acreditar na existência de um Deus completamente bom e todo-poderoso. Ao longo da história, foram oferecidas teodiceias, isto é, tentativas de demonstrar que, para todo o mal e sofrimento encontrados no mundo, pode-se apontar algum estado de coisas que é razoável acreditar que exista e que forneceriam uma razão moral suficiente para permitir o mal em questão.
- Sobre o problema do mal, indico os livros de Peter van Inwagen (2018), Timothy Keller (2016) e N. T. Wright (2009) nas referências.
Referências
- Crisp, Thomas. An evolutionary objection to the argument from evil. In: In Kelly James Clark & Raymond J. VanArragon (Org.). Evidence and Religious Belief. Oxford: Oxford University Press, 2011.
- Darwin, Charles. The Life and Letters of Charles Darwin. Londres: John Murray, 1887, Volume 1, p. 315-16.
- Dawkins, Richard. O maior espetáculo da terra: as evidências da evolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
- Hume, David. Diálogos sobre a religião natural. Salvador: Edufba, 2016.
- Keller, Timothy. Caminhando com Deus em meio à dor e ao sofrimento. São Paulo: Vida Nova, 2016.
- Lewis, C S. O peso da glória. São Paulo: Vida, 2008.
- Nagel, Thomas. Visão a partir de Lugar nenhum. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
- Plantinga, Alvin. Religião e ciência. Disponível em: https://criticanarede.com/religiaoeciencia.html
- ______. Evolução versus naturalismo. Disponínvel em: http://alvinplantinga.blogspot.com.br/2011/02/evolucao-versus-naturalismo-por-alvin.html?fbclid=IwAR0OaI0ZjYc90vmNkHwJ9nPR8BmSUFJC8eiQDSt8EqD_FLsvn-LmG-3yAPc
- ______. Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito? São Paulo: Vida Nova, 2018.
- ______. Deus, a liberdade e o mal. São Paulo: Vida Nova, 2012.
- Sagan, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
- Van inwagen, Peter. O problema do mal. Brasíia: Editora Universitária de Brasília, 2018.
- Voltaire. Cândido, ou o Otimismo. São Paulo: Penguin Classics, 2012.
- Wright, N T. O mal e a justiça de Deus. Viçosa: Ultimato, 2009.
*Bruno Ribeiro Nascimento é doutorando em filosofia (UFRN) e Professor de Filosofia na Faculdade Internacional Cidade Viva, além de líder do Grupo de Estudos da ABC² em João Pessoa/PB.